I - Entre as Sombras e Neblimas (3)

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Charles parecia tão cheio de vida, cresceu da forma mais difícil quando perdeu seus pais ainda na infância, batalhou e nunca desistiu de nada que havia almejado. Era sem dúvida um lutador, mas a forma que se demonstra agora o faz parecer outra pessoa que nunca fora antes, um homem cansado com ar derrotista, sentado e esmorecido em sua cadeira no escritório de sua casa, parado olhando para a tela de seu notebook desligado. Vendo seu reflexo enquanto seu reflexo vê o rosto de um homem vazio. Teria permanecido assim por horas se o barulho lá fora do quintal não o puxasse de volta a realidade. Ele gira a cadeira e se inclina até a janela e vê seus filhos correndo em círculos junto com Johnny e isso o faz sorrir, um sorriso de orgulho mesclado de culpa. Afinal como poderia se sentir tão mal assim tendo uma vida perfeita para ele? E isso o faz se lembrar de sua esposa, de como ao conhecê-la fez sua vida mudar de trajeto trazendo um sentido maior além de uma ideia fixa de carreira e bens materiais. Ele levanta e sai de seu escritório, vai até a sala e encontra sua companheira desde sempre sentada no sofá lendo um livro de capa escura e dura, meio velho. Ela ao perceber sua presença lhe mostra um sorriso que sempre fez bem desde a primeira vez que viu. Ele se aproxima e segura sua mão direita levantando-a deixando-a surpresa:

– O que foi? O que aconteceu?

– Muita coisa... E estamos perdendo.

– Perdendo? Mas o que estamos perdendo?

Ele a guia pela mão, até o quintal e olha para ela com um enorme sorriso infantil:

– Momentos preciosos de felicidade.

E solta sua mão indo em direção aos seus filhos e o cachorro. Laura fica parada olhando sua família e se sentiu abençoada até ver que Johnny havia parado de correr e encarava a casa como se estivesse vigiando. Ela olha para trás sentindo um calafrio percorrer sua espinha enquanto o suor frio surge nas palmas de suas mãos e quando vê a casa, o lar de sua família, e retorna a fitar Johnny, nesses segundos, que logo desapareceriam de sua mente, ela vê pelos olhos dele, pela sua perspectiva. E isso a faz sentir medo.


...


A casa é pura noite, uma noite sem lua, e o ar gelando traz consigo um odor desagradável e indefinido. Apesar de tudo estar no lugar, devidamente arrumado e limpo, ao mesmo tempo tudo parece estar errado e anormal.

Senhor Branco caminha devagar pelo corredor que se encontra antes das escadas que acessam o andar superior, sua fisionomia agora é de uma seriedade intimidadora. Carmen procede em sua postura de costume, ficando na defensiva aguardando qualquer tipo de ataque a todo instante. O silêncio seria perturbador se não fosse quebrado pelo som da chuva que se intensifica cada vez mais. Branco para diante da escadaria e apoia sua mão no corrimão e fala para si mesmo:

“Faça o favor de entrar no meu salão, disse a aranha para a mosca”.

Tira a mão e olha para Carmen:

– Não é aqui em cima, creio que nunca foi. Vamos para baixo.

Merda, logo o porão?

– Desculpe-me, Carmen, mas desta vez vai ser mais fundo.

– O quê?

Sem responder ele continua a caminhar, deslizando os dedos pela parede, seguindo para a cozinha, Carmen o segue sentindo um frio percorrer sua espinha, ela olha para suas mãos que transpiram. Os dois ficam parados diante de uma porta de estilo antigo, da cor de um amarelo vivo que descasca. Ambos olham para a maçaneta de cabeça de leão feita de metal de aparência envelhecida e escura.

– Odeio porões, Branco... Sempre tem coisas podres nos porões.

– Concordo. Principalmente coisas que não podemos ver.

Ele põe a mão direita na maçaneta, gira a cabeça de leão e nada, a porta está trancada.

Leva a mesma mão até a sua testa e fala alto:

– Mas claro. Como fui desatento.

E ao tirar a mão começa a olhar em volta enquanto continua a falar empolgado:

– Quando criança eu sempre tentava ir ao porão, mas sempre estava trancado. – Ele pára e coloca as mãos na cintura.

– Está muito escuro aqui.

– Não para mim. A chave está pendurada acima da porta.

Sua cabeça inclina para o alto e de perto até que consegue ver algo que parece ser uma chave e mais uma vez fala para si:

Hummm… Comigo não era assim tão fácil.

Levanta o braço e pega a chave como se estivesse hipnotizado por ela. Seguidamente a encaixa na boca do leão girando-a até ouvir os estalos. Novamente segura à maçaneta, repete o movimento e a porta abre libertando um fétido cheiro insuportável que causa náuseas e calafrios. Quando ele coloca seu pé no primeiro degrau um grito sobrenatural ecoa das entranhas do porão em um forte e agonizante não.  As mãos de Carmen chegam a tremer e pela primeira vez ela vê seu parceiro vacilar. Os dois não dizem uma única palavra, ficam imóveis aguardando e quando sons de rangidos começam a surgir, senhor Branco vira para Carmen e grita:

MENINA... CORRA!

...

A HORA ZEROOnde histórias criam vida. Descubra agora