X - Atravessando o Espelho (6)

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Em uma terra desolada e deprimente havia um mestre severo, insano, indecente. Cárcere em seu hemisfério perdido, lá permaneceu recluso, ermo e esquecido. De ódio seu coração foi maculado e assim repleto de veneno maldito o Negro sua alma tomou. Não havendo Deus que o salvasse, tampouco anjo sagrado que restou. Cego de fúria e faminto de ambição se deslumbrou por outro mundo que decidiu possuir, mas impedido de atravessar o espelho buscou uma forma hábil e ardilosa para conseguir. Através de servos pôde tocar nesse novo lar que tanto desejou agora com abundante jubilidade o infame mestre regozijou.

Uma mão pálida, suave e magra para e deixa o lápis cair sobre o texto escrito em uma folha azulada. Suas mãos prendem seus longos cabelos louros em um coque improvisado revelando em sua nuca uma pequena tatuagem de um cata-vento cor de rosa. Uma sombra paira sobre suas costas que se aproxima cada vez mais em silêncio. Uma mão oculta por uma luva de couro verde pousa em seu ombro direito fazendo-a se virar rapidamente, mas seu olhar e suas expressões não demonstram surpresa.

- Alenora - Charlotte a chama com sua voz sedutora e hipnotizante - O que está a escrever?

- Alguns pensamentos que ficaram flutuando em minha mente depois que vi aquele lugar amedrontador.

- Ficou mesmo assustada não foi querida?

- Não sei se assustada é o certo para dizer o que senti, foi mais aversão e ao mesmo tempo uma necessidade de saber o que era aquele lugar. Uma sensação de como se eu estivesse sendo puxada para ele como se fosse gravidade. É muito difícil explicar o quê nem mesmo eu compreendo bem o que vivenciei.

- Tudo bem, minha menina. Está sendo muita coisa para você, não teve preparo, nem tempo para absorver tudo que anda lhe acontecendo, mas aos poucos irá saber lidar com esses estranhos ocorridos e utilizar seus talentos sem se assustar com o que eles podem lhe proporcionar.

- Espero que sim - Ela encara Charlotte e analisa suas vestes. Olha seu chapéu verde, combinando com as luvas, o sobretudo preto, com detalhes dourados, e a saia longa, da mesma cor do sobretudo, que encobre seus saltos:

- Vai sair?

- Sim. E estou em dilema se a mantenho segura aqui ou se a levo comigo.

- Por quê? Aonde irá? Você irá demorar? Nem me contou o que sabe de minha avó.

Charlotte põe a mão em sua boca e ri:

- Nossa. Quantas perguntas.

- Desculpe.

- Não querida, não se desculpe. Só me lembrei de você quando era somente uma ratinha e me bombardeada com inúmeras perguntas. Foi bom vê-la assim, apesar das circunstâncias e de seus novos questionamentos.

Charlotte puxa uma cadeira e se senta próximo de Alenora que se encontra em uma mesa antiga de vidro que pertence ao seu avô Lincoln, mas foi muito usada por seu falecido pai. Ao redor há várias fotos espalhadas pelas paredes, talvez uma característica herdada de seu mestre Branco, afinal ele também possui esse hábito recorrente em aglomerar retratos e quadros em sua moradia. Charlotte olha para algumas das fotografias, vê a imagem de uma família feliz, um casal com uma jovem menina nos braços de sua mãe enquanto o pai sorri para as duas. Ela encara o homem da fotografia, já o conheceu no passado, em uma “outra” vida, o primogênito de seu mestre, o doutor Jacob Walker Prince III, pai de Alenora, um homem que apesar de não possuir os talentos de seu genitor, adquiriu um grande respeito por seus trabalhos arqueológicos que foram de grande influência para a Biblioteca do Instituto Científico e Evolutivo da Central.

Ela ainda se recorda das brigas entre seu mestre e Jacob, das diferenças de ideais e do fato de Branco ser reluto e contra seus filhos trabalharem para a Central ou o Escritório. Jacob o ignorou e iniciou sua própria carreira na arqueologia até conquistar seus status e seguir na área acadêmica e como escritor. Já seu filho mais novo Zachary, que possuía talentos peculiares, seguiu as vontades de seu pai e teve uma vida comum longe dos perigos que Branco presenciou e vivenciou.

Seu coração se apertou com essas recordações. As lembranças pra Charlotte sempre as atingiram de maneira intensa ao ponto de fazê-la reviver com a mesma clareza em que as ocorreram. Lembrar-se da morte de Jacob é a mais intensa de suas recordações.

Alenora vê discretas lágrimas escorrerem de seus olhos que aparentam estarem longe dali naquele momento. Ao se dar conta que seu silêncio foi mais longo e notável que o normal, Charlotte se levanta da cadeira, faz um som de pigarro e caminha pela sala coloca uma das mãos no bolso de seu sobretudo e a outra disfarçadamente enxuga as lágrimas:

- Perdoe-me. Creio que ao passar dos anos, ao contrário de muitos que conheci, eu fiquei um pouco emotiva depois de tudo que já vivi e enfrentei nesse nosso mundo secreto.

Ela retorna para a cadeira e se senta elegantemente nela. Olha bem nos olhos de Alenora e prossegue:

- Ok. Já estou em meu normal novamente. Enfim… Escute bem o que tenho a propor, menina. Decida com cautela, mantenha a calma e não quero nada de alvoroço.

- Certo - Responde séria se sentindo como se fosse aquela menina que brincava na praia anos atrás.

- Lembra que disse que estava aguardando alguma resposta ou contato do seu avô?

- Sim…

- As notícias não são promissoras, mas também não são trágicas.

Alenora engole seco e suas mãos se fecham em punho com força. Charlotte percebe sua reação e segura suas mãos:

- Eu disse calma, Alenora. Falei que não são trágicas. Escute tudo que tenho a dizer primeiro. Isso é algo que você tem que aprender sobre adquirir informações antes de tudo e somente depois ter alguma reação a respeito. E ainda assim deve se conter para não permitir que suas emoções tomem conta de suas ações, de seus pensamentos. No nosso mundo, criança, nesse nosso mundo secreto, emoções não podem reinar sobre nós.

- Certo - Ela respira fundo - Vou fazer isso - E relaxa as mãos.

A HORA ZEROOnde histórias criam vida. Descubra agora