39 Passo maior que a perna

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No rosto dele, li que, provavelmente, ele não sabia o que era diversão há um bom tempo. Ele não sabia também que a gente ia parar numa praia.

Estava gostando.
Iria gostar no futuro.

Essa visão, como a outra na igreja, foi como respirar. Não precisei fazer nada, aconteceu. Algo natural e fora do meu controle. Perfeito como estar vivo.

Olhava para ele e só pensava que aquele homem era uma caixa vedada. Era tão escura a matéria na qual ele foi forjado, ou o processo que o levou a virar uma caixa, que ficava impossível adivinhar o que havia dentro. Ele pode até ter sido um lindo objeto um dia, mas alguém o queimou, deformou, derreteu e o moldou em formado de caixa. Pintou de preto bem forte. Fechou com trancas e passou o cadeado.

Ali, no carro, cantando comigo e me vendo com os cabelos ao vento na janela, a caixa ficou transparente.

Seu olhar revelava o segredo de sua mente: estava enfeitiçado pela novidade que eu representava. Ouso pensar que nunca esteve com alguém que o fizesse se sentir ele mesmo - o antigo objeto claro e sem forma, que foi um dia. Ele me olhava como se eu fosse a companhia mais agradável do mundo. Como se olha para uma paisagem ou, o que no caso dele faz mais sentido, um lindo pacote de dinheiro.

- MINHAS COSTAS TRAVARAM, ME AJUDA AQUI. - solicitei sua mão. O ponto de luz em seus olhos se avivou mais. Me puxou com facilidade da janela, pois eu era leve: seu braço devia pesar mais que eu.

Diminuiu o volume da música enquanto eu prendia meu coque de novo, que se desmanchou devido a violência do vento. Meu cabelo estava sujo e muito feio para estar solto.

- Maluquinha... - olhou pelo para-brisa. - Chegamos.

Claro que os caras que andavam atrás dele por todo lado estavam lá, parados em frente a casa. Os vi no parquinho, mas não o acompanharam até a esquina onde ele me pegou. Alcaida pode ter preferido alguma privacidade...

Me dei conta de que, para me preservar, ele se arriscou um pouco indo sozinho me encontrar.

Era a última casa de uma ladeira íngreme, no final de uma rua quase inabitada. Os dois andares e o telhado branco subiam por trás do muro e portão intimidadores. Dava a maior pinta de lugar construído com dinheiro errado.

Ele desligou o carro numa garagem quase subterrânea. A casa era acima do nível da rua, a garagem, abaixo.

Achei tendência.

Meu anfitrião, calado, ia acendendo luzes aonde passávamos. Da garagem até a escada, que levava a área de lazer, contei três interruptores apertados.

- Imaginei mesmo que sua casa era linda, quando vi na chamada de vídeo. - falei, assim que o quintal rodeado por um parapeito de metal e vidro, surgiu.

Lógico que meu eu criança correu até o parapeito do qual me lembrei de ver atrás da piscina. Pessoalmente era ainda mais bela a cor azul-turquesa da água, o verde das plantas Agaves nos cantos, as luzes, o translúcido do vidro e o escuro pontilhado da favela toda ao entorno.

- A torre do vigia... - comento, encantada.

- Torre, né? E ai, quer ou não quer conhecer o Zé? Chega ai. - correu a mão para dentro do bolso, soltando a chave lá.

Fui em seu enlaço por uma porta de vidro de correr aberta. Por trás dela, caia uma cascata branca - uma cortina de seda fina. Ao menos, parecia ser seda e parecia ser fina. Coisa que não era típica na casa de um homem " solteiro", como ele se considerava.

A luz da sala estava acesa, aquecendo o lugar amplo e com móveis de alto padrão. Perguntei-me mentalmente se foi Noêmia a responsável pela sofisticação da decoração.

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