102 Façanha

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Na cozinha, a senhora se sentou à mesa com uma xícara quente de chá envolvida pelas palmas das mãos, fitando cegamente o relógio na parede, que marcava a demora do homem no quarto da neta. Nem todos os chás do mundo conseguiria abrandar seu coração.

Soube, por via deste mesmo órgão, que sua neta precisaria dela esta noite. Serviu ao filho chá de camomila com especiarias para relaxar e dar sono. Ele dormia bem naturalmente, porém, as ervas eram uma garantia. Ela não podia deixar que a neta fosse descoberta.

Se pôs com uma manta nos ombros à janela da sala, vigiando ansiosamente a rua. Horas passaram sem nada acontecer fora do comum. Movimentações, sons normais, nenhuma neta.

Chegou a duvidar de si mesma, porém sua experiência a fez permanecer crente, mesmo diante da dúvida.

Ela fazia uma coisa ou outra pela casa, retornando sempre ao seu posto, atenta a movimentação lá em baixo por de trás das cortinas. Tinha uma boa visão de sua posição, embora, se não fossem os óculos de lentes grossas, não poderia enxergar nada além de manchas embaçadas a essa distância. Equipada com alguns bons graus, via nitidamente a rua vazia, iluminada pelo poste mais próximo.

Ela sentiu apreensão, e certo orgulho por ainda poder contar com seu dom, herdado de seus antepassados, quando o carro diferente estacionou bem em frente a sua casa sem qualquer discrição. Não era comum ele fazer isso, pensou.

Sua neta não sabia que ela costumava espiar a cada vez que ela saia às escondidas achando que a estava enganando. Dava a ela a liberdade de escolha, a deixava trilhar seus próprios caminhos como devia ser, mas uma avó não pode dormir bem enquanto a neta está por ai com um homem como aquele. Daquele mesmo lugar atrás da cortina, via a fugitiva caminhando de volta para a casa com um ar de felicidade, as vezes triste, deduzindo que fora deixada na esquina - vez ou outra, de frente a casa dos vizinhos, para menor risco de serem flagrados. Entrava, então, se benzendo para o seu quarto, orando agradecida. No dia seguinte, nada mencionava ou perguntava, mas quantas vezes não a aconselhou discretamente? Jamais poderia não o fazer. Amava aquela menina de tantas formas! Eram tão parecidas, às duas. E se a neta fosse como ela era em sua juventude, quando conheceu seu marido e os prazeres da vida, Cristo... Ai é que ela teria de rezar mesmo, aconselhar mesmo. Mas esperava, no fundo, que a neta tivesse sua mesma sorte, fosse amada e valorizada, apesar de não ter paz por ela ter caído de amores pelo homem mais dipsutado da favela.

O que aconteceu a outra moça, a Noêmia, poderia acontecer a sua neta!

Ela não deixaria!

Não podia impedir a menina de se apaixonar, e até compreendia as escapadas noturnas e as aventuras que também viveu em sua época - sabia por experiência própria que quanto mais proibido melhor -, mas não deixaria a neta perecer, se pudesse de algum modo evitar. Estava sempre a espreita, antecipando o pior antes que fosse tarde.

Hesitou um pouco para retirar a manta dos ombros, a touca de cetim da cabeça e descer decidida as escadas.

Ao sair pelo portão e ouvir tudo que o homem lhe disse, soube que haviam brigado e que aquilo não passava de uma espécie de vingança por ciúmes dele.

A neta não sabia das cartas, ela preferiu não contar para não interferir em suas escolhas -
não se deve brincar com o destino ou usar as cartas para seus próprios interesses. Elas mostraram quase tudo sobre o sujeito. Eram, diante dos olhos velhos da senhora, como um espelho d'água, refletindo sem nenhum esforço imagens e informações sobre aquela ou aquele que tivesse a energia de seu nome concentrada ali. Não gostava de se exibir ou de gente em sua porta, como aconteceu com muitas mulheres da família que vieram antes dela. Poucos sabiam que ela possuía aquele baralho cigano que a revelava tudo sobre uma pessoa: coisas íntimas, passado, presente e futuro. Nada poderia ficar oculto às cartas. Apesar de ser católica devota e praticante, não resistiu, após anos sem abrir o tecido onde enrolava o baralho e o escondia numa gaveta, tira-lo de la e consultá-lo em prol da neta. Seus instintos foram mais exigentes que sua radical decisão de não jogar mais, mesmo sabendo que logo após viriam os sintomas que a energia sobrenatural trazia.

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