89 O que significa diferente?

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Foi um bom tempinho (tempão) daquele jeito, naquela mesma posição e com aquela mesma técnica de respiração para ele visivelmente ter alguma melhora. Tive então coragem e perguntei o que ele sentia nessas crises. Ele elucidou os sintomas: boca seca, tremores pelo corpo, falta de ar, taquicardia, calafrios, dispersonalidade e um medo constante.

Me respondeu de olhos fechados. Acredito que ainda se sentia envergonhado, apesar de eu achar que tínhamos superado essa etapa.

- Não queria que tu me visse assim... - suas palavras confirmaram. Ele abriu seus olhos tristes. - Ou eu vinha pra ca ou pra casa da Yara... - levou as mãos aos cabelos. Agora parecia bem melhor, já não tremia como antes.

Ele não viu isso, mas eu sorri como uma menina ao receber uma boneca que queria muito.

Quer dizer que num momento extremo é a mim que ele prefere?

Que Yara que nada, ele quis minha companhia. Será que ela já presenciou ele numa dessas crises?

Não comentei nada, muito menos perguntei. Real, não sabia se algo que eu falasse ia ajudar ou piorar seu emocional. Minha avó materna tem um ditado que é seguinte: quando não se sabe o que dizer, melhor se calar.

Eu apenas me levantei e o abracei naquela posição em que ele se encontrava.

- Vou buscar uma roupa seca e a toalha... acho melhor você tomar outro banho. - falei, tendo todo tato do mundo em cada palavra e atitude.

- Pega o meu celular ali pra mim. - ele pediu, apontando, fungando como que testando a melhora dos seus sentidos.

Entreguei a ele o aparelho. Bem na hora que estava na minha mão, a luz da tela de seu Iphone se acendeu e a mensagem desceu pela barra de notificação com um nome salvo. Logo em seguida, outra. Yara pedia que ele a atendesse ou ligasse de volta " pelo amor de Deus", foi o que ela disse.

Eu entreguei o celular a ele, virei e sai do banheiro com o nome dela descendo e descendo na tela da minha cabeça. Demorei mais que o necessário para buscar sua roupa na mochila, revirando até achar uma cueca, bermuda e um desodorante que deixei sobre a cama. Na verdade, estavam bem fáceis de achar, eu só queria escutar mais da conversa, saber com quem ele falava no celular.

Os tiros diminuíram consideravelmente, assim como a chuva intensa, restando nada mais que uma suave garoa. Daqui do quarto eu escutava muito bem o que ele falava. No começo pensei realmente que era com mulher, porque sua voz estava bem baixa e secreta. Abri o bolsinho da frente da mochila, o mesmo que o vi revirar na noite anterior. No seu interior encontrei o que eu queria, relembrando ele vestindo a camisinha, as costas largas e lisas viradas para mim. Era um pacote com várias. Me perguntei com quem mais ele usava, porque com a Yara, sua mulher grávida, não era.

Retirei uma e guardei na mão fechada.

Retornava ao banheiro quando parei junto ao portal do quarto, que era colado, para escutar:

- Mantém a formação na barreira e na entrada do córrego com revezamento no plantão. Se dormir na contenção já sabe qual é. / O mais velho se alimenta de mancada, Bazuca. Eu tava levando no respeito, sacou? Sempre tive ele como um pai, tu sabe, pô/ Ãn?/ Tô, tô melhor... tá, tá aqui comigo. / Te foder, rapá, papo sério aqui tu fica de piadinha/ Foi exatamente do meu lado, irmão. Se eu não tivesse puxado o Felipe ele tinha ido de ralo, mano. A bala passou raspando o pescoço dele, ta ligado não? Abriu maior beição, sangue esguichando pra caralho, ele berrando igual mulher. Na hora ali eu como? Me desesperei, mano. Tu tá ligado que esse viado é como se fosse meu filho. Ver que ele poderia ter morrido num piscar de olhos... Caralho, fiquei de bicho!

Uma longa pausa. Ele diminuiu a voz, então eu me aproximo mais da porta do banheiro. Tem uma parede dividindo, mas é quase lado a lado com a do quarto. Ele estava encostando a porta. Achei que poderia me ver e recuei no susto, mas estava tão distraído que nem me notou aparecendo nos últimos segundos.
Deixou ela cerrada.

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