Antes:
Personagem tal,
Aperto em gravar: "cheguei agora e bati na porta. Vou esconder o gravador porque ela hoje exigiu que eu não o trouxesse."
- Entra, entra... – ela abre e gesticula para eu passar.
Antes mesmo de eu pensar em cumprimentá-la, se vira de costas, entornando um copo de whisky. Eu jamais a vi algum dia, desde que a conheço, tão mal apresentável.
Parece ter chorado horrores; quando meço o seu rosto pelo espelho grande da parede desse absurdo quarto de motel, onde ela insistiu em se encontrar comigo, vejo seu rímel escorrido pelas bochechas, os olhos praticamente sangrentos, tamanha sua vermelhidão. Descalça, os cabelos bagunçados como nunca estiveram. É, ela não é nesse momento nem de longe uma senhora engomada.
- Aceita uma bebida? – oferece, alcançando uma garrafa quase vazia na mesinha dobrável parafusada na parede.
- Não, obrigada. – recuso.
Ela se vira para mim cambaleante, o olhar fúnebre, como se sua alma estivesse morta.
A mesinha tem de cada lado uma cadeira de madeira - ainda me olhando, os olhos sinistramente azuis borrados e lacrimosos, ela simplesmente desaba numa delas. Sua flexibilidade me impressiona quando ergue os pés para o assento e cola os joelhos no peito.
Por um momento ela lembra uma adolescente em sofrimento por um amor não correspondido. E, basicamente, sei que é isso. Ela me ligou assim que Alcaida a deixou sozinha no barraco onde se encontram e me obrigou a sair tarde da noite para vir vê-la. Acho que precisa desabafar...
Por ela ser uma pessoa conhecida, nunca vamos há lugares públicos. Ela prefere motéis.
Me sento lentamente na cama atrás de mim. Ela nega com a cabeça.
Se seu comportamento lembra uma jovem, as rugas em seu rosto atestam a velhice.
Ela nega mais uma vez, derramando o Whisky quente no copo sem gelo. Vira aquela dose.
Eu não digo nada, imaginando que ela entenda isso como um sinal de que quero ser seu ombro amigo, como venho sendo apesar de não suportá-la mais.
- Estou bem... - pronuncia as palavras, mole, denunciando o motivo de a garrafa em sua mão estar quase vazia. – Foi só um momento de descontrole... – faz o número 1 com o indicador. – Um único momento.
- Você não parece nada bem. – me levanto e tomo de sua mão a garrafa. Vou ao frigobar e volto até ela com um energético. – Pelo menos acrescenta isso. – abro e despejo o líquido amarelado em seu copo. Ela não protesta.
Retorno ao meu lugar na beirada da cama redonda. A luz vermelha acima da cabeça dela a deixa como que coberta de sangue. Seus olhos estriados e turvos de lágrimas parecem mais enigmáticos sob tal iluminação.
- Sabe... acho que eu nunca te contei... – sua língua parece frouxa, as palavras se emendam. – Mas um dia ainda vou te contar como o conheci, como me apaixonei por ele...
- Por que não conta agora? – essa é uma história que não me importaria de ouvir.
Ela fecha o olho esquerdo e balança a cabeça preguiçosamente, negando. Seu lábio se suspende no canto, de modo dramático.
- Não quero me lembrar disso por enquanto ou vou ficar pior do que estou – leva o copo à boca, mostrando pouco equilíbrio da mão. – Se eu falar do que ele significa pra mim, vou sair daqui direto pra casa daquela piranha e dar eu mesma um jeito de matar aquela desgraçada.
- Você não pode sujar as mãos com isso.
A cabeça pendendo instável sobre o pescoço, ela tenta forçar um sorrisinho.
- Minhas mãos são imundas há muito, muito, muito tempo... você me subestima.
- Isso não é verdade. Só não acho que seja o momento certo de agir.
- E o que você quer? Que eu deixe essa relaçãozinha evoluir? – baixa as pernas, puxando sua bolsa na mesa para pegar de dentro a carteira de cigarros de menta. O cheiro desse cigarro parece estar impregnado nela constantemente.
Ela se levanta com um aceso entre os dedos e o copo na outra mão. Anda em minha frente de um lado para o outro, trôpega, em silêncio.
Não interrompo suas reflexões para formular nenhuma pergunta. Ela está bêbada, e acho que no momento eu só preciso ouvir.
- Não gostei do modo como ele falou da vadiazinha e a protegeu de mim. Não... eu não gostei mesmo. Mas vou fingir que permiti, que está tudo bem... preciso avaliar melhor a situação antes de qualquer decisão. Mas também preciso mostrar a ele mais que nunca o quanto eu detenho todo o poder. Mostrar que posso tocá-la se eu quiser. – gira, trazendo um sorriso perverso e um olhar fulminante no rosto. – Vou achar um modo de me aproximar... Não devemos manter o inimigo perto?
- Ela não tem cacife para ser sua inimiga, Helena.
Ela vem até mim e enfia a cara diante da minha. Sinto seu hálito ardente de álcool quando diz:
- Qualquer uma que ameace minha relação com ele, tem cacife pra me ter como inimiga.
- E ter Helena Pacheco como inimiga não é bom pra saúde. – digo, descontraindo, virando o rosto para me afastar de seu bafo de bebida. Ela bufa contra minha bochecha, depois, se ergue e volta a andar.
- Não, não é... mas ele parece esquecer disso às vezes. Ele sabe que é minha vida, meu tudo. Por que se arrisca assim? Por que ele brinca comigo de roleta russa? Ele voltou a falar de suicídio... – lança a cabeça para trás. – Ele sabe como me amolecer, porra! Sempre soube... Mas eu também o conheço e sei como mandar um recado sem precisar de muitas palavras. Com Aron palavras não costumam funcionar. Ele é aquele tipo que odeia discutir relação, ouvir exigências e reclamações.
- Humm... mas que recado seria esse?
Ela faz que sim, e senta de novo na cadeira, amassando o cigarro num cinzeiro.
- Ele conhece os meus limites. Se quer se divertir com a garota tudo bem, mas sabe até onde eu aceito... se eu der um jeito de me encontrar com ela, fazer ele saber desse encontro – sorri e me olha de esguelha. – posso com isso refrescar a memória dele. Lembra-lo de quem possui as cartas do jogo.
- Por que simplesmente não manda ele parar de ver a garota então? Ele não tem que fazer tudo que você quer ou tu fode a vida dele inteira? Não sei qual o problema.
- Não posso... não, não. Ele poderia ter uma nova crise. Não posso arriscar, ainda não tenho certeza do que ele sente por ela. Não sei a dimensão e posso acabar levando ele a... não! Vou agir do meu jeito. Tá tudo bem. Tudo certinho... vai dar certo. – ela murmura consigo mesma, então entorna mais um gole de bebida. – Ele vai logo,logo esquecer disso. Tenho planos pra ele... Estamos prestes a avançar mais um passo, não tem espaço pra romance bobo.
Isso me interessa muito. Não que a possibilidade de o Aron se matar também não seja interessante.
- Quais planos?
- Sapão faz parte da velha guarda do crime. Ele é passado. Mais cedo ou mais tarde uns saem de cena para outros entrarem, não é?
Seu sorriso cresce no rosto.
Minha curiosidade também.- Me explica. - peço.
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Pique Al-Qaeda
RomanceEle é uma bomba, um perigo. Ela sabe que não deve se arriscar tão perto, que pode se ferir com uma iminente explosão. Lia tem 19 anos, e uma perda a levou para o morro do Sol. Ajudar a família vem em primeiro lugar, até mesmo antes de seus desejos...