90 Realista

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Durante nosso banho, ele estava quase cem por cento e bem mais descontraído. Enquanto lavava o cabelo com sabonete, me confessou em tom leve, ter ficado com receio de transar comigo e se decepcionar. Abismada, questionei o porquê. Ele enxaguou a espuma, desceu a mão pelo cabelo e rosto para se livrar do excesso de água e me cedeu lugar debaixo do jato fraco do Lorenzetti velho.

Enquanto eu me lavava, ele contou que nunca esteve com uma "mina" inexperiente, que ele tivesse de ensinar como se faz, etc. Se impressionou comigo, porque achava que as virgens eram fraquinhas e sem graça, embora sua intuição dissesse o contrário sobre mim desde o começo.

Obviamente eu não ia cair na besteira de perguntar sobre sua ex-esposa, ainda que tenha pensado no fato de ela não ser virgem quando começaram a namorar. Eu fui a única em algo na vida dele, e isso me fez sorrir por dentro.

- Então foi uma primeira vez para nós dois? - indaguei, sorrindo impressionada.

- Pode crer - respondeu timidamente.

- Amo quando você finge ser tímido. - puxei sua mão para nos beijarmos sob o chuveiro.

***

Quando sai do banho, depois dele, e entrei no quarto, ele estava fechando a janela. A chuva novamente despencava excessivamente lá fora. Fui até ele, vendo que o dia, que mal havia despontado, estava parecendo fim de tarde: escuro, úmido.

Ele olhava através da transparência do vidro para as gotinhas que trilhavam seu caminho até desaparecerem. O zumbido alto da água batendo no teto, era reconfortante.

Fui até o vidro, que já estava ficando embaçado, e desenhei um coração; dentro, pus nossas iniciais. Me voltei para ele, que tinha a boca suspensa no canto por um sorrisinho bobo de afeto.

- Climinha bom pra assistir um filme, comer, ficar deitado... - falei, circulando sua cintura num abraço e botando minha cabeça em seu peito. Sua pele estava quentinha, cheirando a sabonete. Ele não havia vestido uma camisa ainda, só uma calça e tênis. Permaneceu distante, mas passou o braço por trás das minhas costas, ambos assistindo ao espetáculo da natureza.

- Quem dera se eu pudesse ficar em casa hoje, na minha cama, sem estresse nenhum. No momento só preciso disso. Mas é impossível. - beijou o topo da minha cabeça molhada.

- Ouvi metade da sua conversa no celular - olhei para o alto, onde estava seu rosto. Ele olhou de volta, a sobrancelha levantada.

- Espiã, então? - disse, brincando, entretanto, senti meu rosto queimar mesmo assim. Sorri encabulada e, então, fiquei séria.

- Nosso hashi está bem, não está?

Ele afirmou com a cabeça lentamente.

- Tá sim... vai viver muito ainda, me arrastar muito ainda nessa vida. - sua mão pegou todo meu cabelo atrás das costas, escorregando pelo comprimento até as pontas.

Ele me contou que atiraram no Ninja e nele, os dois lado a lado, com outros, tentando chegar num determinado ponto que ele chamou de "miolo". Eu prestei atenção sem me deter nesses termos que eu não sabia o que queriam dizer, até que ele explicou que, por sorte, Ninja foi puxado por ele antes de um tiro o acertar. A bala de fuzil passou de raspão em seu pescoço, arrombando a parede. De raspão, porém, causando certamente, devido à potência de um tiro desses, certo estrago. Nada que se compare ao que poderia ter sido.

Me sacudi inteira num calafrio com esse relato, e voltei a apreciar a chuva.

No meu rosto, lágrimas.

Ninja estava bem, vivo, mas foi por muito pouco. A realidade é assustadora para mim, que até então só perdi meu avô por uma doença, na velhice, e uma prima-avó distante. O que ia ser da gente juntos em meio a esse caos? E minha vida?

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