" Já saí daqui, pode descer"
A mensagem dele é a sinalização para eu tirar de cima de mim o endredom pesado, me levantar e calçar as sandalinhas de pedrinhas.
Sem acender luzes, me localizo no quarto claro pela iluminação natural vinda da lua, parando diante do espelho do meu guarda-roupa. Meu eu escuro e refletido, agindo na calada da noite, mentindo, fugindo, mas feliz só de saber que o verei, parece outra pessoa. Uma mulher que quer se descobrir, que se maquia e se perfuma, que quer ser vista, notada e apreciada. Não por qualquer um. Só por ele.
A parte triste é que o maior orgulho da minha avó é contar a todos o quanto fui obediente e estudiosa a vida inteira. Essas características não me definem mais. Me sinto imprudente, irresponsável e loucamente seduzida por tudo que estou vivendo.
Prendo melhor a franja para trás com uma presilha, retoco o gloss, confiro se meu perfume ainda está ativo e tiro uns fiapinhos da calça jeans escura, que casou super bem como o top de cetim rose pequeno.
Não tem culpa que me pare!
" Não demora, tenho medo de andar sozinha a essa hora" — digito para ele.
Apesar de me sentir mais segura na favela do que em qualquer outro lugar, pois sei que aqui as leis funcionam e ninguém mexe com ninguém, também sei que existem sempre alguns doidos que adoram pagar para ver, assim como estou fazendo. Vai que dou de cara com um doido desses... prefiro não ousar. Não sou de ferro só porque o patrão está de olho em mim. Nunca gostei de andar solitária por ai tão tarde, ainda mais porque o pessoal no bar do seu Alcides fica especulando.
Em minutos, estou deslizando pelo portão menor, que fica na lateral de casa, para descer a rua e o esperar na esquina, como combinado.
Enquanto percorro o trajeto, escuto o que ele mandou, ignorando o fato de algumas pessoas na rua me olharem sem parar. Devem pensar no que a neta da dona Betina, que mal saia de casa desde que chegou, está fazendo na rua às onze e meia da noite, toda arrumadinha.
E se alguém me entregar?
Meu sistema nervoso simpático é altamente estimulado e meu nível de adrenalina vai às alturas.
Ele respondeu com um áudio em que o barulho de vento é alto e me atrapalha a entender o que diz. Ainda assim, deduzo mais ou menos isso:
" Tô chegando em dois minutos, mas mesmo assim pode ir descendo na tranquilidade que meus fiéis tão te guardando de longe. Eu jamais daria a mancada de te tirar da tua casa tarde da noite sem escolta".
Checo em volta, não vendo ninguém com cara de segurança. É quando focalizo uma figura na penumbra de uma das lajes. Um contorno magro masculino e um fuzil, que se move e desaparece na escuridão. Outro surge na esquina, passa o olhar por mim, fala algo num rádio transmissor e recua de volta para o seu esconderijo.
Todo o alívio em constatar que ele pensou em cada detalhe antecipadamente, se concentra em cima do meu estômago. Ele se importa com minha segurança, isso diz muito sobre a pessoa que é.
O farol de uma moto desponta no começo da rua que corta essa em que estou; ao ser acelerada, aquilo emiti roncos estrondosos.
A kawasaki Ninja diminui ao me alcançar. Ele abre um sorriso que me quebra em mil cacos, montado naquela coisa.
Está ainda mais gato de roupa preta, usando duas correntes de ouro mais grossas do que normalmente usa, em cima dessa Ninja possante em minha frente — ainda estou estacada na calçada.
Através de poucos passos chego até ele, que passa os olhos da minha cabeça até meus pés, me elogiando em silêncio, o que me deixa gigante e cheia de confiança.
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Pique Al-Qaeda
RomanceEle é uma bomba, um perigo. Ela sabe que não deve se arriscar tão perto, que pode se ferir com uma iminente explosão. Lia tem 19 anos, e uma perda a levou para o morro do Sol. Ajudar a família vem em primeiro lugar, até mesmo antes de seus desejos...