92 Não pense nela

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Não abrimos o mercado naquele dia, devido ao luto e ao tiroteio recente.

Eu dormi a tarde toda, depois que meu pai e minha avó chegaram.

Ao acordar, já a noitinha, abri um pouco a janela para ver a chuva fina, que não parecia ter previsão de parar. Minha cabeça estava doendo, meus olhos arranhados e inchados, porque eu chorei um pouco após sorrir superficialmente para meu pai e para a vovó, que pelo olhar que me deu, sabia que eu não estava sorrindo espontaneamente.

Essa coisa entre mim e o Aron é muito inconstante... um dia, estamos bem, felizes, no outro, brigando.

Deito a cabeça na janela, por cima do meu braço, sentada num banquinho. Estou de calça e blusa de manga longa de pijama. E meia.

Olho para a casinha da Fabi; luzes acesas, janela fechada.

Ela estaria me esculachando agora, se estivesse aqui.
" Eu te avisei, Lia. Blá, bla, bla. "

Mas quem não arrisca não petisca.
Eu arrisquei.

Olho novamente meu celular.
Morto.

Me sento ereta e desenho no vapor da janela outro coração, as letras T e A dentro dele de novo. Não. Rabisco tudo com a mão. Apago. Elimino.

Sou tão idiota!

Não vou ser a primeira a mandar mensagem dessa vez. Já fiz isso antes, sendo que o Ninja me disse que não era para fazer, que isso só afastava mais o Aron.

Enfio o celular entre a barriga e as pernas.

Volto a admirar a chuva. Saudades de casa, de quando eu não sentia nada por ninguém, de quando eu vivia sorrindo e cantando.

Tento cantar, testo a voz. Paro.

Estou triste, não consigo.

Faço outro coração. Um maior.

A porta do meu quarto se abre.
Vovó usa um roupão felpudo.

Se senta na cama, me mirando com piedade. Eu devolvo o olhar, sentindo o mesmo por mim: piedade. Ela me avisou, Fabi me avisou. Só faltou Jesus descer do céu para me avisar cara a cara.

- Quer me contar? - pergunta cuidadosa, encolhendo os braços junto ao corpo, de frio.

Também sinto frio; fecho a janela.

Ops... o coração, as letras.

Ela lê:

- Tê e A... - tempo calada, olhar perdido - Eu desenhava as iniciais do meu nome e do seu avô por todo canto quando mais jovem. - sorri fino. - Sintoma de paixão... de muita paixão. Só pensamos na pessoa amada.

- Paixão é uma droga, vó. Eu estava bem quando achava gostar do José. Era mais fácil. - retorço os lábios, olhar baixo, girando no banquinho para estar na direção dela. - Não sou mais menina moça. - meus olhos se enchem de água. - Desculpa.

Ele leva a mão ao coração, o mesmo acontecendo com seus olhos.

- Não brinca com isso, Lia. Está mesmo falando sério? Com ele? Casado e ... - ela não deve ter sentido ou visto nada, porque realmente não parece acreditar.

Quando confirmo, sua mão sobe para a sua cabeça, entrando em meio aos cabelos castanhos de raiz meio branca.

- E como... como você está? Como foi? Ele... - me fita um segundo. - foi cuidadoso com você, pelo menos?

- É... foi. Do jeito dele, mas foi... - não tenho do que reclamar, na verdade. Foi lindo.

Queria contar a minha avó que ele vai ser pai, mas sinto tanta vergonha!

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