Capítulo 002

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* 1 ano antes; Los Angeles, 1873

– Arthur Herrera? – ele perguntou, quase incrédulo. Os olhos castanho-esverdeados ganharam um tom mais escuro e arregalaram-se de surpresa, contrastando com a frieza anterior, quando recebeu o tabelião em seu escritório.

– Sim, Sr. Herrera. Seu tio faleceu há uma semana.

Alfonso nada disse, não articulou nenhuma resposta. Limitou-se a apoiar os cotovelos em sua mesa e entrelaçar os dedos, encostando os lábios apertados ali num típico gesto de reflexão.

Há 15 anos não o via. Há 15 anos não lhe enviava notícias. Há 15 anos, desde que se mudara para Los Angeles a fim de subir na vida, ganhar dinheiro, ser alguém. E agora seu tio estava morto.

Com um suspiro exasperado e um impulso dos pés, ele girou sua poltrona, ficando agora de frente para a imensa vidraça de seu escritório. O céu já não tão azul pintava-se de um tom escuro de cinza sobre o imenso terraço da sua fábrica. Máquinas e homens operavam. Mão de obra e matéria-prima para a construção da ferrovia que ligaria Los Angeles à São Francisco. Trabalho árduo sob seu comando e sua supervisão. Dessa vez não era Alfonso quem calejava as mãos e derramava suor.

Já tivera outras visões de Los Angeles na vida, mas esta, sem nenhuma dúvida, era a melhor de qualquer outra daquele passado que ele havia enterrado a muitos palmos do chão.

– É o que você tem a dizer? – questionou enquanto alinhava os punhos do paletó.

– Não, senhor – a negativa veio de trás de sua poltrona e Poncho novamente a girou, reclinando-se e encarando o tabelião a sua frente. O autoritarismo eminente no semblante de Alfonso o fez engolir em seco e baixar os olhos imediatamente para procurar os papéis em sua pasta – Aqui. É um documento redigido por um cartório inglês. Pelo fato de Arthur não ter escrito um testamento, seus bens serão herdados pelo parente mais próximo.

Alfonso agarrou os documentos e o tabelião aproveitou para buscar um lenço de linho no bolso e limpar a testa úmida com ele. Mal teve tempo de terminar.

– Isto é...? – indagou, curioso.

– O senhor.

– Ora, as coisas estão esquentando por aqui, Manzinni. Então o que está em jogo é a lendária mansão em Londres?! – perguntou, erguendo-se da poltrona. A falta de emoção em relação ao tio era evidente, mas ainda assim os olhos de Alfonso cintilaram para o oficial. Há anos atrás aquele havia sido seu lar; agora, vazia, representava apenas uma gigantesca montanha de dinheiro. Embora ele tivesse o suficiente para si, nunca parecia satisfeito.

– E tudo o que houver em suas dependências. O território é vasto. Possui plantações e uma vinícola, o que gerava algum lucro para Arthur e abastecia o comércio das adjacências. Isso antigamente, agora está abandonado.

– Hum – Alfonso refletiu, deixando seus finos lábios se curvarem num ligeiro sorriso que já no segundo seguinte se esvaiu. Ele encarou Manzinni como se acabasse de ter uma ideia – E quanto você acha que aquilo vale?

O homem hesitou, umedecendo a garganta seca.

– O senhor vai... vendê-la?!

E tudo o que houver em suas dependências.

– Bem, eu não tenho ideia, Sr. Herrera – disse, por fim, procurando amenizar a surpresa – Creio que muito.

– Então já que não me é mais útil – com um gesto amplo, Alfonso indicou a porta – Saia, Manzinni.

Com urgência e nervosismo, a ordem foi acatada. Sozinho, Alfonso pôde sorrir enquanto imaginava a rápida ascensão da sua fábrica. Esperava por um trunfo igual àquele como um cão espera o dono lhe jogar um osso. E então lá estava seu osso, mais saboroso impossível.

Poucas horas depois Christopher Uckermann, seu advogado, foi chamado. Ele estava há bons minutos analisando os documentos, a testa se enrugando de vez em quando. Mas Alfonso não estava atento àquilo. Perambulava calmamente por seu escritório, com os braços jogados para trás e as mãos cruzadas nas costas.

– Sim, Herrera – Uckermann disse, recostando-se na cadeira e jogando os papéis sobre a mesa – É sua.

Tudo o que se ouviu após a confirmação foi a rouca e vitoriosa risada de Alfonso ecoando pela sala. As botas de couro engraxado haviam parado de se arrastar pelo assoalho e agora estavam bem firmes e juntas ao pé da janela. Seu rosto já não trazia expressão, o sorriso havia sumido, os olhos esverdeados estavam dispersos, mas o pensamento tinha um rumo exato: a mansão em Londres. A sua mansão.

– Realmente incrível.

– Seu tio ter morrido e consequentemente ter deixado a propriedade para você? – Christopher perguntou, sarcástico.

Alfonso girou o corpo de imediato. Os ombros largos moldados pelo paletó escuro projetaram uma sombra volumosa diante do advogado, que não moveu um músculo sequer.

– Ele não deixou para mim, Uckermann – respondeu com firmeza – Esta casa simplesmente não tinha outra saída. Mas eu garanto a você que ela estará em muito boas mãos, meu caro.

– E depois que você vendê-la?

– Então já não será problema meu – afirmou, lançando a Christopher um olhar que dava aquele assunto por encerrado – Diga-me do que eu vou precisar.

– Fora o que já temos aqui, fotografias. Belas fotografias. E, pelo que consta neste documento, para obter belas fotos você vai precisar gastar algum dinheiro com uma bela reforma.

E Christopher não estivera errado. Em uma semana Alfonso já se encontrava em Londres e seu novo componente ao patrimônio lhe deixara precisamente perplexo e entediado.

O portão enferrujado datava do período pós-cruzadas, e ainda assim, mesmo desintegrado e repleto de ferrugem, dava a propriedade uma imponência que fez um sorriso se estender preguiçosamente no rosto de Alfonso. Ele esticou a chave nos dedos e o abriu. As dobradiças rangeram, as folhas foram arrastadas e Poncho adentrou no território da mansão.

O outono havia deixado a paisagem amarelada. Mesmo com o céu intensamente azul e pouco nublado, o que mais se destacava eram as árvores que acompanhavam o caminho de ladrilhos serpenteando até a porta de entrada. Eram altas, já não tão robustas, justapostas por toda a passagem. Liberavam uma boa porção de folhas amareladas cada vez que o vento as balançava. De verde mesmo ali só havia a pintura descascada das colunas, porque nem a grama sobrevivera ao tempo e ao passar das estações.

– Isso está uma droga – Alfonso praguejou consigo mesmo, desviando-se de uma poça de água acumulada em um dos buracos do caminho de azulejos.

Ele alcançou o pequeno lance de degraus que o levava até a porta e ao início de algo que lembrava bem: a varanda. Onde esperava o anoitecer jogando xadrez junto de Arthur. Por alguns segundos observou a pequena mesa enferrujada, as cadeiras uma frente a outra, o velho cinzeiro empoeirado. Tudo estava diferente, decrépito, feio. E o seu tabuleiro não estava ali, mas a varanda ainda lhe soava familiar. Alfonso podia sentir como se pudesse vê-lo, era como se ainda pudesse ouvir sua própria risada infantil quando finalmente aprendeu a dar um xeque-mate no tio.

Sacudindo a cabeça num gesto de negação, girou outra chave na fechadura da imensa porta de madeira, tão desgastada quanto todo o resto. Mas ao observar o cinza de poeira que cobria os lençóis brancos estendidos sobre os móveis, acabou desistindo da ideia. Era tudo tedioso demais para ele. Só voltaria a atravessar aquela sala quando as janelas estivessem abertas, quando tudo estivesse começando a ser restaurado e quando pudesse ter algum bom e real motivo de gritar vitória por aquela beleza de propriedade.

Ruas de OutonoOnde histórias criam vida. Descubra agora