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Alfonso obedeceu sem dizer uma palavra a mais, sem derrubar a porta ou a casa inteira. Isso chegou a surpreender Anahi, mas o espanto não durou mais que dois segundos. Ela continuou lá, absorta na mais recente reviravolta da sua vida. Mais uma, na verdade. Mais tarde saiu sem avisar, foi até sua antiga casa levando uma porção de presentes e aproveitando um horário em que pudesse se encontrar com Dulce. Margareth ficou em polvorosa.
– Venha, entre – chamou, beijando a sobrinha sobre a testa – Por que Alfonso não veio com você, querida?
– Ele estava ocupado demais, titia.
– Ele sempre está ocupado demais – Judith disse, surgindo em um canto da sala. Anahi olhou por cima dos ombros. De onde ela tinha saído? – Trouxe alguma coisa para mim?
– Você vive escondida sorrateiramente pelos cantos da casa, Judith? – a loira perguntou – Isso me dá medo.
– Annie, não seja dura com ela... – Margareth pediu, gentil.
– É, Annie, não seja dura comigo – Judith repetiu, fingida, fazendo Anahi estreitar os olhos. A morena sentou no sofá ao lado das duas e começou a remexer nos pacotes que Anahi havia comprado – Você sabe que nós gostamos do seu marido. Me magoa que ele quase nunca se dê ao trabalho de vir nos ver, afinal agora somos todos uma única família. Ai meu Deus, que lindo! – gritou, erguendo um vestido de renda.
– Quando você sentir saudade de mim pode ir me visitar – a loira debochou, sarcástica – Você também, Margie.
Margareth assentiu, quieta. Mas Judith protestou:
– Mamãe, não balance a cabeça como se concordasse. Todos sabem que você não quer pisar na casa do pai de Anahi.
– Jud, isso não é verdade.
– É verdade sim! – ela retrucou, ríspida. Anahi revirou os olhos e começou a massagear a cabeça, tentando não dar atenção – Você sempre teve medo de deixá-la descobrir o passado e finalmente ver que tem direito a uma vida muito mais interessante que a que você gentilmente ofereceu a ela. Você não gostaria de vê-la escolher alguém que não fosse a gente. Mas já aconteceu. Anahi prefere estar lá com Alfonso do que aqui com a família que a manteve viva quando ela estava fadada a nunca ser alguém – concluiu, dando de ombros – Aceite.
Antes que sua tia respondesse, Anahi explodiu:
– Pare de falar de mim como se eu não estivesse escutando, Judith! A propósito, pare de inventar mentiras sobre mim o tempo inteiro, como se sua vida dependesse disso!
– Não é mentira, Annie – Margareth murmurou. Anahi a olhou, contrariada, erguendo uma sobrancelha – Eu fico feliz que, ao contrário do que eu imaginava, você tenha encontrado sua felicidade. Mas eu tive medo que sofresse ao relembrar o que aconteceu quando você era apenas uma criança, queria protegê-la, cuidei de você como se fosse minha filha...
– Como se fosse a filha preferida, inclusive – Judith replicou.
– Então eu tinha medo que Arthur tentasse tomar esse lugar.
– Margie, isso não vai acontecer – a loira garantiu, segurando as mãos da tia entre as suas – Você e John são as pessoas mais importantes da minha vida. E... – ela hesitou, pensando sobre a morte de Arthur – É diferente, eu tenho lugares especiais para vocês que outras pessoas não podem ocupar.
– Eu sei disso, é claro. Eu só queria que nós pudéssemos parar de separar a nossa história em passado e presente, como se fossem duas vidas diferentes que não se misturam, que não são compatíveis... Acho que faltava algo que impulsionasse você a seguir em frente, independente do que havia atrás – Margareth disse, encarando Anahi com um sorriso no rosto – E esse algo foi Alfonso.
– Claro – Anahi pigarreou, relapsa, sentindo vontade de vomitar – Ele me faz tão bem que eu nem sequer sei explicar.
A conversa seguiu por horas, sem grandes novidades. Exceto no momento em que Margareth se recordou que havia esquecido uma panela no fogão e acabou deixando Anahi sozinha com Judith.
– O que você está escondendo, Annie? – a morena perguntou, curiosa – O casamento vai mal ou o quê?
A loira sorriu.
– Judith, olha bem para o meu cabelo, para a minha pele... – ela provocou, encarando a prima – Eu estou ótima, como você vê, estou divina. E o meu casamento só tende a melhorar.
– Deve ser por isso que você nunca nos convida para ir até lá, para que não atrapalhemos tanta felicidade. Eu só queria ver de perto, Annie, queria acreditar.
– Você queria colocar seu olho gordo em cima, isso sim. Você quer o meu marido, a minha casa, os meus pertences, a minha vida.
– Ai, que horror! – Judith gritou, gargalhando – Desde quando você é tão importante assim? Eu não quero a sua vida, Deus que me livre disso. Eu só estou pensando na mamãe. Convenhamos que ela foi o mais próximo que você teve de uma mãe desde que a sua morreu, ou seja, desde sempre. É uma pena que você não a considere igual.
– Não, Judith, tia Margie sabe que o lugar da minha mãe é insubstituível então pare de tentar envenenar nossa relação.
– Não seja patética, Anahi, você nem a conheceu – zombou, maldosa – É como se sua mãe nunca tivesse existido. É só um fantasma que você insiste em reviver, nada mais do que isso. Ela nunca fez nada importante, nem a própria filha ela soube gerar direito.
Judith nem viu quando a mão de Anahi acertou seu rosto com força total. Quando se deu conta estava caindo sobre o sofá, exasperada, sentindo a pele arder em chamas.
– Se você não sumir da minha frente em dois segundos... – Anahi ameaçou, possessa, enfiando os dedos nos cabelos desgrenhados da prima. Ela os puxou, exibindo o rosto rubro e chocado de Judith perto do seu – Eu vou mandar um capacho de Alfonso te dar uma surra que vai te deixar aleijada pro resto da vida.
Judith bem tentou reagir, erguendo a mão para estapear Anahi, mas a loira era muito mais esperta (obviamente não só naquele aspecto). Com as unhas afiadas agarrando os pulsos da outra, Annie a arranhou devagar, deixando uma marca vermelho-vivo em cada punho. Judith gemeu de dor, sentindo os olhos se encherem de lágrimas.
– Sua louca! – ela ralhou, furiosa – Me solta ou eu vou gritar!
– Isso é para você lembrar quem eu sou – Anahi avisou, soltando-a com um empurrão – Acho que tínhamos nos esquecido.
Judith sumiu da sala em dois segundos, apavorada, conferindo se a prima não estava realmente atrás dela.
– Eu acho que acabei de ver uma sombra da antiga Anahi – disse Dulce. Annie virou-se para a porta, dando de cara com a ruiva de braços cruzados, tranquila enquanto cruzava a sala – Estou em choque.
Anahi meneou a cabeça, tranquila, limpando as mãos na barra do vestido.
– Eu costumo dizer: algumas coisas não mudam.
– Como vai, Annie?
– Estou bem – respondeu, simples. Dulce ergueu uma sobrancelha e Anahi continuou: – É sério, Dulce. Estou bem.
– Nós precisamos conversar? – a ruiva perguntou. Seu tom tinha algo autoritário; Anahi sabia do que ela queria falar.
– Sem dúvidas – concordou, decidida. As duas subiram para o quarto de Anahi. Teriam uma longa tarde pela frente.
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Ruas de Outono
Fanfictie[CONCLUÍDA] *** Londres, 1874 Alfonso massageou a densa cascata de cabelos dourados que caía sobre o travesseiro ao seu lado. Anahi estava adormecida há algum tempo, imersa em um sono profundo, enroscada nos alvos lençóis de seda. Enquanto isso, el...