Capítulo 010

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***

Alfonso esfregou o rosto, impaciente, percorrendo pela milésima vez o perímetro de seu escritório. Estava quente de raiva, podia jurar que tinha febre. Então esbravejou, esmurrando a mobília mais próxima. Isso não podia estar acontecendo. Arthur não podia ter tido uma filha. Ainda mais aquela que lhe dava ganas de cometer um assassinato. O que lhe seria bastante útil, pensou com maldade, assim a mansão não corria o risco de escapar de suas mãos.

A simples ideia o fez enrijecer o maxilar, tomado pela tensão.

– Margot!! – gritou, sentando-se logo atrás de sua mesa. Cruzou as mãos e apoiou o queixo ali, como o habitual. Fechou os olhos e se pôs a refletir, tentando também sintetizar um pouco de calma.

A governanta surgiu segundos depois, da mesma maneira de sempre: solícita, a postura ereta e a roupa lisa, as mãos cruzadas na frente do corpo. Os cabelos, outrora macios e escuros, agora eram brancos. E a pele estava enrugada. Mas ainda se parecia como há muitos anos atrás.

Margot já estava naquela casa quando Alfonso nasceu, fora como sua mãe, e continuara pelas dependências quando Alfonso se foi. Ele sentia que a conhecia profundamente ainda. Mas Margot não. Agora Alfonso era um estranho para ela.

– Pois não?

– Arthur teve filhos? – ele inquiriu imediatamente. A mulher franziu o cenho, incerta do que havia ouvido.

– Como?

– Sabe do que estou falando.

Outra vez Margot hesitou por um minuto, fechando a porta atrás de si. Depois assentiu.

– Um. Mas ele nunca viu.

– E a mãe?

– Bem, ela faleceu. Antes de Arthur.

– O que ela era? – Alfonso não dava pausas, precisava saber de tudo.

– Uma garçonete. Talvez você se recorde. Ela aparecia sempre ao meio dia.

– Eu era uma criança desdentada, Margot – ele anunciou, em tom de desinteresse.

– Na verdade, você tinha exatamente 8 anos quando isso começou.

Alfonso estreitou os olhos e começou a cavar o fundo das suas lembranças mais remotas. Ele sabia que havia uma moça. Ele e Arthur sempre estavam à mesa quando ela se juntava aos dois. Lembrava-se de gostar daquilo, da presença dela, pois precisavam de mais alguém para jogar bola. A única coisa que podia se recordar sobre ela eram, talvez, os profundos olhos claros que sorriam. Ele apertou mais os olhos, concentrando-se. Eram azuis... E tinha a pele alva... Os cabelos loiros ondulavam contra o vento enquanto ela corria para buscar o brinquedo que fora atirado longe.

Ele soltou um grunhido de raiva. Não sabia mais se sua mente estava fazendo-o enxergar a própria Ana ou se a semelhança era de fato tão grande.

– Como ela era? – perguntou, levando Margot a se tornar cautelosa. Diante do silêncio, Alfonso arqueou uma sobrancelha – Eu quero saber de tudo.

– Ah... – fez um ligeiro gesto confuso – Pequena, loira e de olhos azuis. Muito bonita e gentil.

Ele fez uma careta, soltando um resmungo.

– Quantas pessoas sabiam disso? Desse romance, dessa gravidez?

– Ninguém sabia, Alfonso – explicou, impaciente com o questionamento – Talvez apenas seus familiares mais próximos e eu, pois era aqui onde ela passava o dia ao lado de Arthur. Já você era jovem demais para entender. Quanto a moça... Felicity era simples, além de ser estigmatizada por trabalhar exposta demais. Arthur queria fazê-la sua esposa.

– E por que ela perdeu a oportunidade? – perguntou num riso.

Margot ficou decepcionada. Pensou em repreendê-lo, mas ele não era mais aquele garoto de quem trocara as fraldas. Definitivamente não era. Então continuou:

– Tinha medo do julgamento. Quando descobriu a gravidez, tentou convencê-lo a irem embora daqui para que criassem a criança em outro lugar. Arthur não aceitava que fosse dessa maneira. Acho que brigaram, pois nunca mais a vi – seu tom foi ficando ameno, denotando um pouco de tristeza – Às vésperas de dar à luz ela sumiu para sempre.

A confissão fez Alfonso regredir no tempo novamente. Depois que perdera a companhia para jogar bola Arthur nunca  mais fora o mesmo, não era um homem divertido como antes. Foram anos assim. Alfonso não entendia bem o porquê, mas sabia que não gostava, não era bom jogar xadrez sozinho.

– E a criança? – perguntou.

– A menina desapareceu junto com a mãe.

Ele pensou por um instante, parecendo confuso. Alguma coisa faltava. Logo ele começou a tamborilar um dedo sobre os lábios.

– Como você soube que era uma menina, Margot? Se as duas haviam desaparecido...

A mulher respirou fundo antes de responder. A melhor parte estava chegando.

– Bom, seus tios ficaram encarregados de criá-la, mas nunca quiseram que ela e nem ninguém, inclusive Arthur, soubesse quem era seu pai. Certo dia me procuraram, a sós, para pedir ajuda. Estavam passando por dificuldades. Não queriam nada além disso e me pediram segredo. Dei o que pude e respeitei aquela decisão, isso não cabia a mim. Além disso, já havia muito com o que me preocupar, você também havia ido embora e Arthur já estava viajando há muito tempo. Disseram-me que Felicity havia morrido no parto e então falaram-me um pouco sobre a menina. Esta foi a única vez que tive contato com eles, há muito tempo atrás. Eu não teria tido a oportunidade de contar a Arthur, se tentasse, pois ele nunca mais voltou.

– São uns aproveitadores – disse Alfonso, em tom de escárnio – E você caiu nesta história sem ao menos saber se a criatura estava realmente viva. Será que os anos de vida não te proveram um pouco de malícia, Margot? – blefou.

A idosa ergueu uma sobrancelha, sentindo-se afrontada.

– Eu a vi certa vez. Está bem viva e mora do outro lado da cidade.

Como quem acaba de ter um doce roubado, Alfonso bufou. A tentativa de encontrar algo que fizesse o parentesco entre Anahi e Arthur soar improvável lhe parecia cada vez mais distante, por isso sua cabeça doía demais.

– O que me diz sobre ela?

Dessa vez Margot suavizou as rugas de seu rosto, sorrindo.

– É uma moça adorável, idêntica a um anjo. Já está pronta para casar, é uma Lady. Seu nome é Anahi.

Herrera ergueu os olhos num solavanco.

Ana.

Ana de Anahi.

– Bennington? – ele perguntou.

– Não – ela discordou, parecendo confusa – Chama-se Anahi Portilla.

Alfonso cerrou os punhos e os dentes, sentindo a raiva crescer em espiral dentro de si.

Anahi Portilla. Ele não esqueceria aquele nome. Ah, aquela pequena golpista mentirosa...

Ruas de OutonoOnde histórias criam vida. Descubra agora