Capítulo 085

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Naquela manhã, Anahi resolveu protagonizar a arrumação da mesa para o almoço, em vez de ser a coadjuvante sempre superprotegida. Ainda não se sentia totalmente recomposta, era verdade, mas nem de longe se parecia àquela Anahi apática que tinha de se esforçar além do habitual até para levantar-se da cama. Isso animava a todos: dava perspectiva de que novas oportunidades surgiriam em breve, que mudanças agradáveis surgiriam.

– Eu decidi que vou fabricar vinhos – ela disse, concentrada em ajustar com cuidado um bule fumegante no centro da mesa. Margareth, que trazia pratos de sobremesa, quase tropeçou no meio do caminho para a sala de jantar.

– O que disse?

– Quero produzir vinhos.

– Está maluca, Anahi? – a mais velha perguntou, aturdida.

– Por que estaria, tia Margie? – Annie retrucou, tranquila e igualmente desafiadora. O tom familiar da personalidade da sobrinha levou Margareth a revirar os olhos com um suspiro.

– Não me venha com essas ideias novamente. Você esteve doente há poucos dias, ainda não se recuperou. Não pode estar falando sério.

– Estou falando sério – a loira reiterou, sorridente – Não é uma ideia para hoje, tampouco amanhã, precisarei de mais tempo. Estive pesquisando, estudando alguns livros e sei que nosso solo e nosso clima são bons.

Nesse momento, Margareth ergueu o queixo e anunciou:

– A maior vinícola do país agora pertence ao seu ex-marido.

Anahi, de costas para a tia enquanto arrumava a mesa, engoliu em seco, tentando não demonstrar o quanto a constatação a abalou. Era justamente aquela a intenção de Margie: desestimulá-la para tentar convencê-la a desistir de uma ideia que, a ela, parecia completamente absurda. Mas Anahi já havia pensado naquilo antes. Estava ciente dos percalços e pretendia seguir em frente em todos os seus objetivos a partir de então, mesmo se eventualmente tropeçasse e ralasse os joelhos. Se ter sido enganada pelo homem que amava e perder um filho não a havia destruído, nada mais poderia fazê-lo. Desistir sem sequer tentar nunca mais seria uma opção.

– A segunda maior pode ser a minha – ela deu de ombros, tentando soar convicta – Ou talvez a primeira. Tenho bastante tempo pela frente e sem dúvidas será algo diferente. Quero que as mulheres aprendam a apreciar um bom vinho sozinha e que não seja algo exclusivamente masculino.

Margareth pareceu completamente escandalizada com a ideia.

– Por que não flores, como havia mencionado antes? – ela tentou – Por que não chocolates?

– Não desisti dos chocolates.

– Então...? – instigou, curiosa. Anahi sacudiu os ombros, demonstrando indiferença – John não vai gostar que trabalhe, sobretudo com vinho.

A loira estava pronta para retrucar de sua forma habitualmente atrevida quando uma voz masculina irrompeu no ambiente da casa, vinda da sala de estar, dizendo:

– Eu penso que ela pode trabalhar com o que quiser.

Margareth franziu o cenho, totalmente contrariada. Então se inclinou na direção da porta que dividia os cômodos e observou um homem de traços opulentos, a quem não conhecia, apoiado em uma bengala, se aproximar devagar.

– Quem é você que simplesmente entra na minha casa e acha que... – ela começou, erguendo o indicador, mas então a distância se encurtou o suficiente e ela terminou por reconhecê-lo. O choque da visão a deixou sem palavras. Margie cobriu a boca com uma mão, horrorizada. Anahi por sua vez, eufórica pelo que havia escutado, nem percebeu.

– Isso é bom! – a loira gargalhou, sorridente pelo entusiasmo – Ouviu, tia Margie? É a mais sincera opinião de um homem. Isso influencia em algo para você? Os tempos mudaram!

– De fato – ele concordou, atravessando a porta da sala de jantar – Algumas outras coisas não, nunca mudam.

Anahi riu, divertida, desviando a atenção do rosto chocado da tia e virando-se, finalmente, na direção do homem que acabava de entrar. Ela nunca o havia visto, portanto sua única reação foi dirigir-lhe um sorriso despreocupado.

Já Arthur não conseguira escapar ileso. Perdera o fôlego ao contemplá-la. Anahi era idêntica a mãe, uma fiel projeção da mulher que ele tanto amou. Mas mais do que a dor da saudade, dessa vez ele sentiu a energia imensa do amor que sentia. Era um reencontro; a reintegração de passado, presente e futuro; o verdadeiro sentido da sua existência e a única explicação para ainda estar vivo, mesmo depois de tudo. Ele já não se recordava da última vez que tivera um sentimento tão bom preenchendo seu peito.

De fato, Felicity havia sido a única mulher que Arthur amou e, depois de tê-la perdido, ele pensou que nunca seria capaz de sentir aquilo novamente. Mas a vida mais uma vez o constrangia. Agora ele tinha Anahi; agora ele amava integralmente outra mulher.

– Eu costumo dizer o mesmo – ela concordou, divertida – Então... É um convidado dos meus tios? Nós já estamos terminando de servir a mesa e se quiser...

– Não – ele interrompeu – Ninguém me convidou.

– Nesse caso, o que procura? Ah! – ela sacudiu a cabeça, sentindo-se levemente atrapalhada – Eu me chamo Anahi.

– Você – ele respondeu, ansioso – Estive procurando por você durante muito tempo.

A loira franziu o cenho, confusa, recolhendo a mão.

– E para quê?

– Para conhecê-la.

– Quem é você? – Annie perguntou, dura. Não era capaz de ler perfeitamente a expressão no rosto do homem e o mistério a deixou desconfiada e com uma ligeira irritação.

– Meu nome é Arthur – disse ele, emocionado – Eu sou seu pai.

Anahi piscou, paralisada. O silêncio que veio em seguida quase esmagou a todos.

Pesadelo ou conto de fadas? Atordoada, ela o fitou profundamente. Tudo o que pôde foi resfolegar e dizer, num ímpeto de recuperar o sentido e a convicção de tudo que um dia imaginou saber:

– Meu pai está morto.

– Eu estava. Eu decidi que não haveria vida se não fosse para te encontrar, Anahi – murmurou, a voz falhada, dando um mínimo passo na direção da filha que nem se moveu – Eu te encontrei, você está aqui.

O homem sorriu, franzindo os traços do rosto já deveras enrugado, e Anahi imaginou que ele estivesse prestes a chorar. Assim como ela, mesmo que ainda não pudesse compreender.

Após um momento de silêncio, os braços de Arthur timidamente alcançaram os ombros de Anahi. A face podia estar enrugada, as mãos ligeiramente curvadas pela idade, os passos lentificados, mas ele o fez com a graça e a agilidade de um pai que deseja simplesmente amar e proteger sua cria. Ela continuou inerte, em choque. Só depois de longos segundos ele a sentiu soluçar, retesada, ainda imóvel pelo susto, e a agarrou mais forte contra o peito. E choraram como se o ar mal pudesse penetrar os pulmões. Era a coisa mais simples e mais grandiosa do universo: ele tinha sua filha nos braços. E ele nunca mais iria perdê-la.

Ruas de OutonoOnde histórias criam vida. Descubra agora