Cento & um

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Quando me perguntam se aquela vida era a vida que escolhi a resposta é sim, eu podia ter saído da prisão e ido atrás dos meus pertences, ido atrás da minha carreira, mas o meu olhar pereceu sobre aquela vida. Eu tinha um estudo, o que me era uma vantagem, eu sabia fazer cálculos então ninguém me passava a perna, eu sabia ler muito bem, escrever muito bem, falar muito bem. Há dias que sou juiz, outros sou político, as vezes sou a vida, constantemente a morte.

Zulu está sentado na varanda de tijolos Casinha, a Casinha nada mais é que a casa do tráfico ou a prefeitura, depende do ponto de vista, aqui guardamos quase tudo e nos reunimos, resolvemos os problemas, os nossos problemas e os problemas da comunidade, trocamos ideia fina, abaixo da Casinha uma pizzaria, ninguém entra na Casinha se eu não estiver lá dentro, exceto os embaladores de droga, já a pizzaria embaixo é um disfarce para o principal ponto de tráfico de drogas da comunidade, não fabricamos drogas mas recebo entregas de fornecedores, embalamos e repassamos. Quando assumi o bagulho Zulu me ensinou quase tudo, me explicou como funcionava cada negocio. Droga delivery era o novo ápice.

Parece uma merda eu dizer que gosto da droga ou que financio isso, mas a maior parte do lucro que é revertido para a própria comunidade vem das drogas. Infelizmente eu tive de entender isso sem contestar, assim como tive de entender que um corpo é só um corpo e a morte é só a morte.
Quando matei pela primeira vez, no caso o Formiga, meu inimigo, tive um choque de realidade quando eu estava no cadeião, fiquei inconscientemente inquieto, desenvolvi algumas manias como roer unhas até que as mesmas sangrasse, a dificuldade em dormir triplicou e depois da prisão as manias pioraram.
Não só rôo unhas, essa não foi minha única mudança, o meu jeito de olhar, de andar, de tocar nas coisas haviam mudado, meu sono se tornou leve, meus tiques nervosos eram mais vividos em minhas expressões, eu sou abominavelmente assustador. E na liberdade novamente matei outro alguém, dessa vez fugi, nada de morte de inocente matei um filho da puta, um maníaco que estava sequestrando menininhas em seu Gol e aquilo ascendeu um alerta na comunidade eu era o herói, eu me tornei herói, mais uma vez eu fiz o que a polícia era incapaz, no fim você descobre que o ódio da polícia pelos donos de facções não é em querer manter a lei e sim em perder a lei. Ver meu reflexo me assusta por isso evito me olhar, olhar o cabelo baixo quase raspado com um leve degradê, a falha na sobrancelha não proposital mas de uma cicatriz de alguma briga que tive e não me lembro, o olhar que não era sereno mas um tanto assustado, eu emagreci, dentro da penitenciária era somente exercícios, comida e drogas, fiz novas tatuagens.
Quando soube da morte da minha querida mãe eu usei droga para caralho, tentei me matar inúmeras vezes. No fim, eu me recriei do zero — mas algumas coisas, alguns gostos não mudaram. 

Me sentei ao lado de Zulu que está fazendo uma lista para mim, em seguida desliza o papel de folha de caderno amassado na minha direção.

— Estão todos aqui?

— Sim patrão — responde

— E a mercadoria?

— A Carga tá lá no Dioguinho — responde

— Quantas cestas?

— 280 cestas básicas. — disse ele.

Ele deu um riso orgulhoso, e meneei a cabeça sutilmente.

— Amanhã a favela vai comemorar, vamo fazer bailão lá na viela?

— Tranquilo.

— Ta liberado mesmo patrão?

— Tá pô. — falei olhando a lista. — Me dá a caneta.

Pego a caneta de sua mão fazendo um cálculo.

— Escolhe dez pessoas para ficar sem Cesta.

— Dez patrão? — perguntou

— Sim dez, vou enviar dez para a escolinha, as crianças lá estão sem comida. — respondi — Me cita o nome dos reclamões da última vez...

A Ordem do CaosOnde histórias criam vida. Descubra agora