Prólogo - Parte II

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E mesmo que eu ande no vale da sombra e morte, eu não temo pois estou cego, e somente minha mente e minha arma me confortam.



Os pés habilidosos corriam em disparada entre os becos e a vielas se esgueirando feito bicho selvagem enquanto os Gambé subiam o morro na caçada frenética pela bandidagem. Uivos ecoavam nos ares daquela noite, uivos que eram dados como aviso que os Canas estavam na quebrada.
Escondam suas armas, suas drogas, suas passagens, seus crimes, seus corpos.
Quando aprontávamos, como a carga que acabamos de roubar, a quebrada era o último lugar e também nosso único refúgio, se caso a polícia fosse atraída para cá e eu não estivesse a de acordo com a situação teríamos problemas.

Deito-me sob uma calha em um telhado qualquer e observo as viaturas cruzar a rua estreita de cimento um grupo de policiais armados também passam por mim e me encolhi ainda mais enquanto os mesmos miram suas armas para o alto em busca de qualquer suspeito. Há uma paz silenciosa nesse momento, pois é assim que o inocente morre, qualquer um que apareça na frente dos Canas eles metem bala, perguntam depois, portanto ninguém deve se retirar de suas casas nessas horas, por isso os uivos eram importantes para avisar não so a bandidagem, mas a camaradagem também, um aviso para que tomem cuidado.

Depois de longos minutos eles desistiram, não da busca, mas de subir o morro, amanhã talvez voltariam ou não. Estava perigoso de mais para apenas dois camburão da polícia, eles precisavam de mais. Após a saída dos mesmos um aviso, fogos de artifício sobem estourando no ar anunciando suas evasão.

Desço cuidadosamente da calha, sem fazer barulho. A polícia é como uma sombra por aqui, quando se fazem presente todos somem, mas logo que se vão a vida parece renascer em cada canto, os moradores saem de suas casas, as luzes começam a acender e muitos residentes não carregam expressão de medo ou apavoro, estão acostumados com aquela situação.
Ajeito o meu fuzil segurando nas mãos e vou subindo o morro silenciosamente, hora ou outra algum morador passa por mim e um cumprimento de cabeça me é dado, nas escadarias que só um passa, eu sempre muito educado dou passagem primeiro aos moradores. Aqueles que não vivem aqui, ou estão aqui com frequência quando se deparam comigo ou qualquer outro portando um fuzil olham com olhos amedrontados e até se encolhem.

Cuidadosamente vou pisando no chão precário de pés descalços com o receio de pisar em algo que possa ferir os mesmos. Há sempre garrafas de vidro quebradas, pedras pontiagudas, elevações irregulares e pavimentação esburacadas, materiais cortantes, lixo, insetos espalhados no chão, e quanto mais sobe-se o morro mais precária a situação vai ficando.

Há olheiros em todos os cantos, escuto assovios, sabem que estou chegando.

Nunca foi minha ideia assumir o comando de uma facção, não mesmo, ainda mais de uma que que está em seus primórdios. Antes de eu ser preso por seis anos eu era um advogado, mas não um bom advogado. Dediquei 19 anos da minha vida para pegar o integrante da facção que matou o meu irmão e consegui, o matei e fui pego em flagrante devido a morte respondi três processos judiciários, somando um total de quase 15 anos de prisão (ainda foram generosos uma vez que você é preso, te colocam para responder até mesmo coisas que não fez), por alguns outros critérios judiciais eu tive a pena reduzida.

Existe uma certa democracia de poder na favela, quando eu matei o líder do comando, a forma brutal de sua morte, um homem cuja teve o rosto dilacerado e uma pistola 9mm atolada em seu crânio fez com que meu nome repercutisse aos quatro ventos. Automaticamente os homens me viam como um homem impiedoso e começaram a pedir meu auxílio de dentro da prisão para lidar com determinadas situações. Nunca foi minha vontade correr pelo lado errado, mas aos poucos descobri que eu estava correndo pelo certo. A bandidagem correta corre pelo certo, em suas razões são dadas perante a um abandono social, o mesmo que sofri. Quando me foi tirada a liberdade na prisão, mesmo após sair dela eu ainda não era livre, não podia mais trabalhar, nenhuma empresa me queria, nem mesmo a AOB permitiu que ainda advogasse, todos os anos de estudos jogados no lixo. Por mais que eu tivesse matado o líder de um facção o nome dele foi dado como um inocente qualquer, criminoso, porém um anjo. Apareceu familiares dele na televisão, nos jornais, e eu? Eu era o monstro. Formiga, o apelido do homem que matei foi desassociado aos crimes que ele cometeu pela própria polícia.
Eles queriam um vilão. Eu me tornei esse vilão.

A Ordem do CaosOnde histórias criam vida. Descubra agora