Saí do consultório e já eram dez e quinze. Agora era fato, eu estava morta. A visão havia retornado ao normal, e eu já conseguia enxergar tudo perfeitamente como antes.
Corri até a rua e desacorrentei minha bicicleta do poste que a tinha prendido. Naquela hora o relógio já havia se tornado meu melhor amigo. Era inevitável não querer saber o tempo exato a cada segundo. Podia ouvir o som dos ponteiros na minha cabeça.
Pedalei o mais rápido que pude. Não era fácil, pois o peso de minha mochila nas costas dificultava todo o processo. Se houvesse algo pior do que ir até a escola, era ir até a escola atrasada. E ah, claro, em uma manhã de sábado.
Percorri algumas ruas paralelas para que pudesse cortar caminho. A cidade não era grande, mas mesmo assim não a conhecia por inteiro. Ao dobrar na última esquina para chegar ao meu destino final, sinos começaram a tocar sequencialmente. Grandes e pesados sinos. Meu olhar os encontrou, oferecendo-me uma vista privilegiada da maior igreja que já tinha visto em toda a vida. Ela era imensa, remetia àquelas de estilo gótico da Idade Média.
Olhei para o lado oposto, enxergando logo à frente o colégio que me esperava impaciente. Saber que ainda teria duas aulas naquela manhã deixava meus olhos cansados. Então optei por ignorar meu destino final e mudar de rota. Aqueles sinos pareciam me chamar, e com toda certeza minha mãe entenderia se eu faltasse à aula. Afinal, eu estava indo me encontrar com Deus, certo?
Freei a velha bicicleta e a encostei em uma árvore frente à Igreja. Alguns passos foram tomados para que eu pudesse parar diante daquela arquitetura impecável, fazendo meus olhos voltarem-se para cima, com brilho de admiração. Os sinos pararam de soar, e enfim adentrei por um de seus portais.
Nunca fui religiosa, católica, cristã, ou qualquer coisa desse tipo. Construí a minha própria fé, sempre acreditando em algo maior. Eu não diria Deus, porque eu era muito cética para acreditar naquilo que não podia ver. Mas existia alguém com quem eu costumava conversar vez ou outra. Sobre a religião, só a conseguia enxergar quando vinha comparada com política, e isso não me dava razões para voltar a pensar nela novamente.
Mas, no fim de tudo, eu gostava de visitar igrejas diferentes. Quer dizer, no bairro que eu morava existia uma pequena capela, e alguns mendigos dormiam lá durante a noite. Era meio difícil estar vazia, sendo que sua lotação máxima deveria ser de cinco pessoas. Andando algumas quadras havia uma outra, e era nessa que eu passava boa parte dos meus dias. Não era tão perfeita quanto esta que tinha acabado de conhecer, mas lá o silêncio reinava. Esse era o motivo principal por meu apego a elas. Silêncio.
Minha casa sempre pareceu um campo de batalha. Nunca tive meu espaço, e o único momento que eu conseguia ouvir minha respiração era quando todos dormiam. Tirando o ronco do meu padrasto, é claro. Por isso, na maioria dos dias, eu saía do colégio e ia diretamente para a igreja. As tardes passavam rapidamente enquanto eu me concentrava nos deveres que fazia em frente ao altar.
Os meus primeiros passos levaram-me até o local, que estava levemente escuro. Pensei em como nunca o tinha visto anteriormente, e como os sinos fizeram o favor de me apresentá-lo. Evitei entrar pelo corredor central, tomando o da esquerda. Não queria voltar a imaginar-me vestida de noiva, como da última vez. Péssima cena que minha memória já tinha feito o favor de apagar.
Sentei-me em um dos bancos e larguei minha mochila ao meu lado. Meus olhos fitaram o grandioso altar, composto de inúmeras velas e imagens pintadas ao fundo. Tudo era realmente muito bonito. Olhei em todas as direções, e ninguém mais tomava conta do lugar. Sozinha, como sempre. Acho que a maioria das pessoas se esqueciam de ir à igreja, ou apenas tinham medo de frequentá-la. Pecadores. Ao imaginar isso, parei e pensei comigo mesma: Eu não era uma pecadora. Definitivamente, eu não era uma pecadora. Tudo bem que muitas vezes a preguiça parecia querer ganhar-me, mas eu a vencia na maioria delas. E esse era o meu único pecado capital. Sempre fui comportada durante o ano inteiro, e nunca foi a fim de impressionar o Papai Noel para ganhar bons presentes. Até porque eu descobri que ele não existia aos quatro anos, e isso foi um pouco traumatizante demais para mim (e para todos meus amigos também, porque eu acabei contando para todos eles, e aí suas mães quiseram me matar).
Então o que eu estava fazendo ali? Não precisava me confessar, e nem ao menos tinha cometido pecado algum. Ah, o silêncio. É.
Pus-me de pé e ziguezaguiei pelas fileiras de bancos. Meu dedo indicador sobre os encostos acompanhava os meus passos lentos. Até que ele parou. Parou porque meu corpo ordenou ao ver um grande vitral pelo qual a luz do sol penetrava. Uma cena bíblica era retratada, e os rostos não possuíam detalhes. Os olhos da mulher estavam voltados para o céu. Estes, pareciam demonstrar um pouco de sofrimento, o que me fez pensar em várias coisas por mais alguns segundos. Os raios de sol iluminavam aquele vidro colorido que refletia-se em meus olhos.
Caminhei mais um pouco, até que finalmente criei coragem para enfrentar o corredor central. Não foi difícil, pois dessa vez não imaginei familiares me olhando com alegria enquanto eu caminhava vestida de branco com meu pai ao meu lado. Da última vez que essa cena apareceu em minha mente, não havia um noivo me esperando. Apenas o padre, de braços abertos, e daí você pode imaginar a desgraça que aquilo se tornaria. Falando nisso, eu nem queria casar. Não em uma igreja. Talvez em uma cabana de madeira, sem familiares e apenas alguns animais. Ok, presépio demais.
Voltei a sentar em um dos bancos, e, com movimentos silenciosos, arrumei meu corpo para que pudesse deitar naquela madeira dura e fria. Essa era uma das minhas partes favoritas. Sempre deitava de olhos fechados, e só os abria quando me sentia consideravelmente confortável. O fiz. E, como já imaginava, tive uma grata surpresa: O teto era absolutamente impecável. As pinturas procuravam retratar a realidade, e eram compostas por várias cores exuberantes. Se não fosse o desconforto, poderia dizer que estava voando. Os arcos pontudos elevavam a igreja a um patamar do chão. Depois de muito observar, fechei os olhos outra vez e desci da minha viagem ao céu.
Não sei se era o certo a se fazer (sabe, por não ser tão íntima assim com Deus e praticamente viver na casa dele), mas fiquei de joelhos e orei para alguém durante alguns minutos. Não pedi mais que o básico: Saúde, paz e talvez, se possível, um namorado. Mas isso era o de menos. Permaneci de olhos fechados por mais algum tempo, e fiz o sinal da cruz (isso também era para apenas católicos? Que seja.). Abri-os devagar, voltando a fechá-los rapidamente ao perceber que a alguns bancos em minha frente, uma mulher estava fazendo o mesmo ritual que eu. Não sei por que fiz aquilo, afinal não estava fazendo nada de errado – apesar de deitar no banco da igreja -, mas acho que foi algum tipo de reflexo. Tentei abri-los mais uma vez, e dessa vez assim eles permaneceram.
Sentei no banco e analisei a mulher que rezava. Os seus cabelos eram compridos e negros, assim como suas vestes. Na cabeça, um lenço da mesma cor. Acho que estava de luto por alguém, o que me deixou triste. Era meio impossível adivinhar, sendo que estava de costas, mas ela devia ter mais que sessenta anos, e seus joelhos dobrados pareciam implorar por misericórdia.
Um tilintar suave ecoou pelas paredes frias, e demorei alguns segundos para perceber que era o terço que a velha senhora carregava em suas mãos. Levantei devagar, não querendo ser notada. Busquei minha mochila, pois dessa vez seria ridículo se eu fizesse meus deveres enquanto alguém rezava e chorava por dentro.
A porta da igreja parecia um caminho para o nada. O sol invadia aquele lugar com tanta força que se tornava impossível ver o que tinha do outro lado, mesmo eu sabendo o que era. Perto do grande portal, um grupo de velas repousava. Os dizeres eram bem claros: 'Faça seu pedido e assopre uma das velas'. Olhei para aquela cena e pensei em deixar a última chama acesa para a senhora realizar seu pedido, mas nesse momento ela deveria estar fazendo vários deles, então achei que ajudaria se uma outra pessoa (no caso eu) pedisse por ela. Encarei a vela acesa e depois virei meu corpo a fim de encontrar aquela alma ajoelhada. Pedi por ela em silêncio, e depois voltei-me para soprar a chama. Para minha surpresa, ela já havia se apagado.
Eu poderia voltar para casa, mas era cedo demais. Minha mãe já devia estar acordada, pois certamente o bebê teria lhe tirado o sono como sempre. Quis evitar a discussão que sabia que acabaria por acontecer, então deitei na grama, ao lado do pinheiro que sustentava minha bicicleta, ainda em frente à Igreja. A mochila serviu-me de travesseiro. Tentei olhar para o céu, queria contar nuvens para que o tempo passasse, mas os raios de sol deixavam-me cega. Isso fez com que meus olhos encontrassem a escuridão, e eu adormeci.
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O Menino debaixo da minha cama
Teen FictionSophia é uma garota de dezesseis anos comum, diferentemente de seus problemas. Sua irmã está grávida do namorado motoqueiro, o bebê que a sua mãe teve durante o segundo casamento a faz acordar todas as noites, e o irmão caçula... Bem, ele é o caçula...