Capítulo 3

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Acordei com dificuldade, mas logo fiquei de pé ao lembrar que a preguiça me levaria diretamente para a igreja mais uma vez. Ignorei o fato de ter um relógio em meu pulso, e observei o da construção religiosa. Não tive tempo para admirar seus ponteiros pesados de ferro, pois quando percebi que a noite se aproximava, entrei em pânico. A minha intenção era de dormir no máximo alguns minutos, mas seis – é, eu disse seis – horas se passaram. Tentei lembrar-me de algum sonho que tive, mas nada me veio à cabeça. Seis horas dormindo sem sonhar.

Voltei a colocar a pesada mochila em minhas costas, e agradeci por ter uma bicicleta que me levaria rapidamente para casa. Porém, ao andar alguns metros, percebi que seus pneus estavam vazios. Maldita sorte. A calma era quase impossível de ser encontrada, e eu já podia imaginar a polícia procurando por uma garota desaparecida desde a manhã daquele sábado (não que minha mãe se importasse tanto assim comigo). Carreguei a bicicleta ao meu lado, andando o mais rápido que pude. Ela fazia um barulho estranho ao ser arrastada pelo asfalto.

A escuridão me envolveu quando entrei na rua de casa. Apesar dos poucos postes de luz, ainda era possível enxergar aquela residência pintada de roxo berrante. Isso sempre foi um problema para mim, pois quando eu era um pouco menor, tinha o apelido de 'A menina da casa roxa'. Um dos meus pedidos de natal foi para que Papai Noel chamasse seus ajudantes e pintassem ela de uma cor... Bem, de uma cor normal.

Deixei a bicicleta na lateral, ao lado da caminhonete azul de minha mãe, e entrei em casa. Lá dentro não era diferente: Todas as paredes eram amarelas (tirando as do meu quarto e de minha irmã, que ela insistiu para que pintássemos de rosa, apesar de eu não gostar muito dessa cor), a decoração era um misto de todos os tons imagináveis, e os móveis herdados de minha avó variavam entre vermelho e marrom. Era como viver dentro de um arco-íris.

– Mia? – perguntei, na tentativa de encontrar alguém.

O barulho de um prato caindo no chão e quebrando em mil pedaços me fez ir até a cozinha. De princípio estranhei o súbito silêncio que pausava por ali. Encontrei o bebê no cadeirão, e suas roupas estavam sujas. Os pedaços de prato quebrado estavam no piso, que havia ganhado um pouco de leite. Aproximei-me.

– Oi, pequeno. – passei minha mão pelos seus três frios de cabelo. – Onde está a general?

Era inútil. Nathan tinha completado um ano a poucos dias, não sabendo ainda falar. Ele era fruto do 'amor' entre minha mãe e meu padrasto. O único filho do segundo casamento dela. Ninguém gostava muito do nome do pequeno, e também não sei por que o tinham registrado assim (na verdade acho que meu padrasto estava bêbado quando o registrou), então todos o chamávamos de bebê, simplesmente. Várias vezes perguntava-me como o chamaríamos quando crescesse. Criança, adolescente, adulto. Não teria a mesma graça.

– Ah, você está aí. – a voz de minha irmã surgiu. – Onde se meteu?

Parei de dar atenção ao bebê e encontrei o olhar de Cecília.

– Eu estava na casa da Virgínia. Fomos para lá depois da aula. – menti. Reparei bem na jovem loira e, depois de a estranhar, percebi o que havia de diferente. – Você está de avental?

Ela olhou para sua roupa e arrumou o adereço sujo de comida.

– Sim, estou. Essa é uma noite especial, quero toda a família reunida para jantarmos juntos.

Isso era muito estranho para um dia só. Nossa família nunca jantava junta, era cada um por si.

– Não me diga que você vai anunciar seu casamento com o protótipo de roqueiro.

Ela ficava muito brava quando eu chamava seu namorado assim. Fui encarada com desprezo, e então a minha irmã voltou a mexer nas panelas que esperavam no fogão.

– Não fuja do assunto, Sophia. Eu sei que você não foi à aula hoje, muito menos para a casa da Virgínia. Não tente me enganar. – dessa vez ela fez a mesma cara simpática que a recepcionista do consultório havia me ensinado.

– Er, eu... Bom... – odiava gaguejar quando mentia. Denunciava-me.

– Não se preocupe, não contarei para a mamãe. Estou... Boazinha. Mas é só hoje, não se acostume. – alertou.

– Mas como você sabe que não fui para a aula? – perguntei.

– A Virgínia me ligou. Ela está puta com você.

Droga. Isso já havia acontecido um dia, na sexta-série, a última vez que eu havia faltado no colégio. Eu combinei com a minha melhor amiga de que nunca ligaríamos para a casa da outra perguntando o porquê de não ter ido estudar. Nossos pais descobririam tudo. Acho que passou tempo demais, e Virgínia acabou esquecendo disso. E era óbvio que ela estava puta comigo. Quer dizer, somos só nós duas naquela escola. Quando uma falta, a outra fica totalmente isolada e perdida. Tínhamos um tipo de pacto, para que uma avisasse a outra dias antes quando fosse faltar. Naquele momento eu podia sentir o sofrimento que ela tinha passado durante a manhã, e tive certeza de que ela faria o mesmo comigo um dia. Faltaria, sem avisar, para ficarmos empatadas, sem brigas. Isso também fazia parte do pacto.

– Ela mandou avisar que você perdeu a melhor manhã desde o primeiro dia de aula do primeiro ano. Um tal de J foi de camiseta regata, e a Cris deixou cair suco de morango na blusa dele. De propósito. Daí ele tirou a camiseta no meio do refeitório e todas as meninas babaram. Ela mandou enfatizar que os músculos dele são realmente frutos da malhação diária. Nada de bomba. – disse Cecília, passando o recado.

Eu me odiava. No único dia que nada de diferente deveria acontecer naquela escola, tudo aconteceu. E bem nesse dia eu deixo meu coração seguir o soar de uns sinos. Tudo bem, a igreja valeu a pena, mas o J ficou sem camisa. Todas as garotas olharam, menos eu.

Eu deveria me conformar, pois não era novidade. Desde a primeira vez que faltei no colégio até a última, tudo de bom acontecia exatamente nos dias que eu não estava presente. Na segunda-série eu perdi um dia inteiro de pirulitos gratuitos. Na quinta-série deixei de comparecer quando a atirada da Mariana beijou o garoto que eu e a Virgínia babávamos. E, no último dia que faltei – excluindo o de hoje – perdi uma distribuição de camisinhas, como um alerta contra a AIDS (tenho certeza de que essa foi a única vez que minha mãe agradeceu por eu não ter ido). Na oitava-série eu pensei em faltar quando a minha irmã me fez cair no meio da rua e eu acabei quebrando um dente, mas me sujeitei a ir com um gelo pendurado na boca para não perder algo incrível que estava por acontecer. E acabou não acontecendo nada.

– O J? Sem camisa?! – gritei. – Meu Deus, como eu me odeio.

– Eu me sentiria um lixo. – Cecília acrescentou, sábia como sempre.

– Te vejo depois, eu preciso ligar para a Virgínia. – estava querendo saber cada detalhe, cada descrição de veia saltando daqueles músculos.

– Parada aí! – gritou ela. – Você não vai a lugar nenhum até depois do jantar. Suba e tire essas roupas cheias de grama, quero você apresentável.

Eu estava rindo por dentro. Minha irmã com um avental? Só podia ser brincadeira. Acho que a última vez que ela chegou perto do fogão, foi quando tentou fazer um Miojo, sendo que ela o fritou ao invés de cozinhar. Havia óleo por tudo.

Fiz um esforço para adivinhar o que ela teria para contar de tão importante. Talvez ela confessasse que havia deixado seu namorado roqueiro que usava drogas e cheirava mal. Talvez a notícia fosse melhor e ela dissesse que estaria se mudando para bem longe. Ok, ela não era tão insuportável assim. Tirando o fato de eu ter sido obrigada a usar todas as suas roupas, por ela ser mais velha. Eu sabia que apesar de seus traços de burrice, sempre poderia contar com minha irmã. E ela tinha um cabelo loiro absurdamente liso que me dava inveja. Taí outro pecado. Talvez eu fosse uma pecadora mesmo.

O Menino debaixo da minha camaOnde histórias criam vida. Descubra agora