Não sabia por que meu pai estava preso. Ele nunca quis me contar, e Mia se preocupava em não tocar no assunto. Meus pais haviam se separado há quase dois anos, mas há um mês eu havia acordado com a notícia de que ele tinha sido preso. Foi tudo muito triste. Cecília e eu chorávamos todos os dias, e demoramos alguns mais para contar para o nosso irmão. Minha mãe não derramou nenhuma lágrima. Era triste ver aquele homem preso em uma cela minúscula com seu companheiro. Ainda mais triste era não saber quanto tempo levaria para que o tirassem daquele lugar. Eu estava de mãos atadas, não podia fazer nada. E nem queriam que eu fizesse.
Deixei o presídio de construção precária e olhei para o meu relógio. Ainda era muito cedo para voltar para casa. Provavelmente todos estariam dormindo, e a minha mãe me mandaria cuidar do bebê caso ele acordasse. Procurei imaginar alguma coisa boa para se fazer em um domingo, mas tudo me soava como tédio. O primeiro pensamento que deixou-me excitada foi ligar para Virgínia para perguntar sobre a aula do dia anterior. Eu ainda estava curiosa. Mas ela se encaixaria na categoria de dorminhocos, e eu também não tinha um celular para fazer a ligação (minha mãe pensava que celulares eram aparelhos controlados pelo governo para saber cada passo que as pessoas davam. Como se eles se importassem).
Andei pelas ruas solitárias. Parecia que o fim do mundo tinha chegado e eu era a única sobrevivente. Não que eu tivesse forças necessárias para enfrentar o apocalipse, mas seria legal ter um mundo só meu. Eu o pintaria com as cores que mais gostasse, tom sobre tom, contraste sobre contraste.
Alguns quarteirões depois, encontrei um bando de vida reunida. Parei ao lado daqueles portões de ferro gigantes para observá-las. Lanças pontiagudas na vertical pareciam mostrar o caminho para o céu. Um letreiro – também feito em ferro – dizia que eu estava em um cemitério. Entrei pelo grande portal, e aquele lugar era mais um dos que me deixava confortável. Você pode pensar que eu era meio estranha em relação a esses lugares (quer dizer, igrejas e cemitérios), porém eu só procurava um pouco de silêncio. Não o encontrei de forma absoluta dessa vez, pois algumas lápides à frente, um padre falava algumas palavras que eu não conseguia identificar. Apenas o som chegava aos meus ouvidos. À sua volta, cerca de vinte pessoas vestidas de preto choravam por detrás de seus óculos escuros. Uma mulher ruiva estava ajoelhada, despedindo-se do caixão que sumia lentamente pelo buraco feito na terra. Observei a cena completa com muita clareza. Na verdade eu estava parada ali como uma idiota intrometida, e só percebi isso quando um garotinho – que também fazia parte das pessoas reunidas – olhou-me de longe, e eu lembrei-me de caminhar.
Contornei aquelas pedras pesadas com diferentes inscrições. Ao afastar-me bastante, cheguei a uma em especial. O nome de minha avó estava esculpido na lápide, com um pequeno retrato seu ao lado. Sentei na grama e passei os dedos por sua foto. Lembrei-me de quando era muito pequena, quando eu perguntava o porquê de eu não ter herdado o seu sorriso que iluminava qualquer ambiente. Senti-me um pouco culpada por não ter levado flores, mas eu tive certeza de que ela não se importaria. Minha presença era o suficiente.
Nunca soube o que fazer ao visitar alguém no cemitério. É claro que você se emociona e relembra os melhores momentos que passou junto da pessoa amada, mas depois disso a mente esvazia-se novamente. Ficar entre todos aqueles mortos não me incomodava, pois dentre todas as pessoas do mundo, eles eram as mais inofensivas.
Minha avó sempre havia sido especial para mim. Foi ela quem havia deixado-me a melhor receita de cookies do mundo, um livro e um colar. Lembro-me de que eu costumava viver ao seu lado quando eu ainda estava começando a minha vida. Eu passava praticamente o dia todo em sua casa. Essa, que após a sua morte, havia sido demolida para que Mia pudesse vender o terreno. Não tinha mais para onde fugir quando eu cansasse da casa roxa.
Segurei com força o colar em meu pescoço e lembrei-me do exato momento em que a minha mãe tinha me dado aos sete anos, como presente de aniversário deixado por minha avó. Era uma corrente dourada com um pingente de clave de sol. Sempre que aquela bola de fogo brilhante no céu me encontrava, seus raios refletiam no colar e atingiam diretamente a senhora lá em cima. Isso fazia com que ela se lembrasse de mim.
Sentei contra a lápide e voltei a assistir ao enterro do desconhecido. O padre era a única pessoa de branco no local, o que acabava chamando a atenção. Suas mãos fizeram o sinal da cruz, e eu – mais uma vez intrometida – repeti junto a ele. Alguns funcionários do cemitério cobriam o caixão com terra, essa era a pior parte. Saber que você nunca mais verá aquela pessoa que ama, e que ela passará pelo resto da eternidade embaixo dos nossos pés. O grupo de pessoas se abraçava enquanto deixava a curtos passos o local.
– Ela é sua avó? – uma voz estranha ecoou por trás de mim.
Assustei-me. Meu coração disparou. Não estava preparada para nenhuma conversa, ainda mais vinda daquele lugar que agora encontrava-se vazio. Olhei para trás, e o garotinho que antes estava ao lado do grupo familiar encarava-me com um ligeiro sorriso entre os lábios.
– Ah, oi. – falei, enquanto dei um salto. – Sim, é minha avó.
O garoto vestia uma camiseta branca como as nuvens. Já a sua calça parecia um pouco suja, e os pés estavam descalços.
– Ela está morta? – ele perguntou, deixando-me na pior das situações.
Eu não sabia o que responder para uma criança inocente.
– É, ela está no céu agora. – observei sua reação. – Ela me amava muito.
– Ela ainda ama você.
Sorri para ele, imaginando que não deveria ter mais de seis anos.
– É, eu acho que sim. – falei, confusa. – Você não deveria ter ido embora com aquela família?
– Eu não estou com eles. Estou procurando a minha bola. Eu e meus amigos estamos jogando futebol, ela caiu por aqui.
Agora suas roupas justificavam a falta de sincronia com as pessoas de preto.
– Você quer que eu te ajude a procurar? – falei, enquanto olhei para os lados. – Eu não tenho nada para fazer mesmo.
O garoto tinha ido embora. Girei em torno de mim mesma, e o avistei longe de mim. Ele corria, gritando para os amigos que não havia encontrado bola nenhuma.
Olhei mais uma vez para a minha avó e voltei ao grande portal. No caminho, procurei para ver se não encontrava alguma bola, mas a minha busca foi em vão. Deixei o cemitério pensando em comprar um brinquedo novo para aquele pobre garoto, mas me conformei de que nunca o veria novamente.
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O Menino debaixo da minha cama
Teen FictionSophia é uma garota de dezesseis anos comum, diferentemente de seus problemas. Sua irmã está grávida do namorado motoqueiro, o bebê que a sua mãe teve durante o segundo casamento a faz acordar todas as noites, e o irmão caçula... Bem, ele é o caçula...