Meu olhar fixou-se em um ponto qualquer daquela sala de audiência. Ignorei todos os olhares perplexos à minha volta, e a minha mente começou a viajar. Todos os dias de minha vida passaram pela minha frente, um após o outro, como se fosse um grande filme. Cada momento com Mia que apareceu foi ressaltado, e eu pude ver como era tudo tão óbvio. A resposta para o seu desgosto por mim estava na minha frente há dezesseis anos, e eu recusava-me a acreditar.
Eu já havia pensado naquilo. Quer dizer, no fato de a mulher bipolar não ser a minha mãe. Na verdade era a única resposta lógica para explicar todo o ódio que ela sentia por mim. Eu tinha certeza de que ela não seria capaz de acabar com a vida de Gustavo ou de Cecília, pois nem em uma de suas piores crises ela faria aquilo. Mas comigo era diferente, porque eu era apenas uma pessoa qualquer. Não sua filha.
Agradecia por aquilo. Agradecia por ser tão diferente daquela mulher, e por isso mesmo não ter um pouco de sangue dela em minhas veias. Eu nunca a quis, sempre desejei poder trocá-la por uma nova mãe. Uma nova pessoa que me amasse e me tratasse como filha.
Aquela notícia não foi mais impactante porque eu sempre havia me sentido rejeitada. Você pode ser adotado e ter o maior amor do mundo, mas não se a sua mãe de mentira fosse a minha. Então porque ela havia me adotado?
A cena da primeira vez em que eu havia enfrentado aquela fera, despertando-a, apareceu claramente em meus pensamentos. Ela disse: 'Você está oficialmente expulsa dessa casa, sua órfã!'. A chave para tudo já havia me sido entregue. Eu recusei a agarrá-la.
Senti uma mão pousar em meu ombro, o que fez com que aquele filme das piores cenas de minha vida desaparecesse. Cecília olhava-me com o olho encharcado.
– Está tudo bem. – a minha voz faltou.
Fitei a cena ao meu redor. Pessoas cochichavam, fazendo-se perguntas. A juíza batia com o seu martelo novamente, pedindo ordem. Os guardas seguravam Gustavo, que tentava acabar com a vida de Mia.
Caos.
♦
O som do choro era o único barulho naquele corredor. Eu estava de braços cruzados, fitando a parede em minha frente. Ao meu lado, no mesmo banco, Gustavo derramava lágrimas há vários minutos. Assim como a jovem loira ao seu lado, cujo namorado ainda estava do lado de dentro da sala de audiência. Greg segurava o bebê quieto, apenas encarando o nada como eu. As únicas palavras que ele havia dito eram: 'Eu não sabia.'.
Os policiais abriram as portas e acompanharam Mia. Um deles percebeu que estávamos logo ao lado, então ficou por ali mesmo para vigiar. Quando percebi a sua presença, levantei e dei um passo em sua direção.
– Sophia... – Greg começou a alertar-me.
– Eu sei.
Continuei caminhando, até parar ao lado da mulher. O guarda direcionou a sua mão até a minha barriga, ordenando-me para não dar mais nenhum passo. Avisei que ficaria ali mesmo e não faria nada, então ele assentiu. Mia não olhava para mim, apenas ajeitava a franja.
– Por que você me adotou? – perguntei.
Nenhuma resposta.
– Quem é a minha mãe?
Tentei outra pergunta, mas ainda não obtive sucesso.
– Mia...
Ela olhou no fundo dos meus olhos.
– Eu não sei. – disse.
♦
A audiência recomeçou. Depois que a juíza leu alguns papéis, ela olhou com firmeza para a mulher loira sentada na cadeira a sua frente. Cruzei os meus dedos.
– Excelência, antes de você anunciar a decisão, eu gostaria de acrescentar que entrei com um pedido de guarda provisória dos menores. Cecília e eu pretendemos adota-los.
– Os dois são casados?
– Sim. – ele afirmou.
Olhei para a minha irmã, que estava sorrindo. Aquilo era extremamente novo. Ela piscou para mim. A senhorinha simpática falou mais algumas palavras, voltando a encarar a ré.
– Por decisão unânime, fica estabelecido que a senhora Mia Braun está interditada a partir de hoje. Os seus filhos, Sophia e Gustavo, ficarão sob os cuidados da irmã mais velha por enquanto. Como ela pretende adotá-los, o serviço social avaliará o caso durante os próximos dias. O menor Nathan ficará sob responsabilidade do senhor Gregório.
Respirei aliviada. O martelo encontrou a mesa pela última vez.
♦
Abracei a minha irmã.
– Casada? – perguntei no seu ouvido.
– Depois te explico.
Ela ainda limpava algumas lágrimas.
– Vai ficar tudo bem agora. – confortou-me.
– Eu sei. – disse. – Preciso de um tempo sozinha, por isso vou sair. Não se preocupe, pois estarei na casa de Sam antes de escurecer, tudo bem? Eu só preciso pensar um pouco...
– Certo.
Olhei-a uma última vez. Não esperei para abraçar os outros, apenas deixei a sala de audiência correndo, movendo-me a passos longos e rápidos. Abri todas as portas que ousaram aparecer em minha frente com força, nunca olhando para trás. Eu não sabia exatamente onde estava, então fui obrigada a parar na parada de ônibus. Peguei o primeiro, cujo destino levaria-me para a casa roxa.
Quando avistei o lugar tão temido, puxei a corda do transporte público e saltei fora. Estava mais uma vez frente a frente com a minha antiga residência. Não, eu não pretendia entrar lá. Depois de analisá-la por poucos segundos, comecei a correr mais uma vez. Foram quadras e quadras até que eu pudesse chegar no... No parque.
Eu sei que ele não estaria lá, isso era óbvio. A minha intenção nem era a de encontrar o impossível. Apenas precisava sentir aquele cheiro de nada, que lembrava-me ele, unicamente pelo fato de ele já ter pisado ali. Visitei a casa de bonecas, deitei no gira-gira, e fiquei de ponta-cabeça no escorregador.
Lacrimejei. Eu, Sophia, sempre tão forte e inabalável, soltei lágrimas por um garoto que provavelmente havia me esquecido. Era só um provavelmente, pois eu não tinha certeza, mas era a opção mais crível. O meu Arie havia cansado de sua Malka.
Escalei com cuidado a árvore em que ele havia me pedido em namoro. Sentei no mesmo galho para observar o mesmo sol. Eu comecei a pensar não só no seu desaparecimento, mas também no de uma nova pessoa: minha mãe. Eu não sabia o seu nome, o motivo pelo qual ela havia me abandonado, e nem se ainda estava viva. E Mia, a única pessoa que sabia disso (que eu havia sido adotada), também não fazia ideia. Eu poderia ser filha de qualquer um.
Mabel, a secretária do meu oftalmologista. Ela poderia não ter idade suficiente, mas a sua barriga avantajada podia ser fruto de uma gestação. A mãe de Ben poderia ser a minha mãe, e então nós dois seríamos irmãos. Ou a de Virgínia. Até mesmo Marga... Ok, chega de pensar nisso.
Eu não descobriria quem era ela. Tarde demais, Sophia. Melhor esquecer, assim como deveria fazer com Jonas. Já estava na hora de seguir em frente, procurar novos garo... Novas coisas para ocupar a mente.
Mas nenhuma paixão seria como a nossa. Nenhuma fuga seria realizada, nenhuma brincadeira de esconde-esconde debaixo das camas, nenhum anel-de-moeda... Nenhum desaparecimento. A vida voltaria a ser como sempre havia sido. Normal, tediosa, estúpida.
O sol cansado continuava a brilhar.
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O Menino debaixo da minha cama
Teen FictionSophia é uma garota de dezesseis anos comum, diferentemente de seus problemas. Sua irmã está grávida do namorado motoqueiro, o bebê que a sua mãe teve durante o segundo casamento a faz acordar todas as noites, e o irmão caçula... Bem, ele é o caçula...