Cento e quarenta e quatro era o número daquele dia. Talvez eu contasse os minutos também, mas minha mente já tinha feito esforço o bastante contando há quantas horas Jonas e Ben não apareciam. A rotina desde o show de talentos era a mesma: Acordar, olhar embaixo da cama para ver se o primeiro garoto não havia aparecido, e depois de ter um 'ainda não' como resposta, correr para a janela aberta (caso esse mesmo menino quisesse voltar e entrar) para observar a casa vizinha, procurando um sinal de Benício.
Eu já estava considerando-me uma tia solteira e podia me imaginar com uns quarenta anos, cuidando dos filhos de Cecília enquanto ela saía com as amigas para fofocar (ela já seria velha). Olhando para o nada, comecei a analisar as hipóteses: Metade dos meus pensamentos diziam 'Você pode não ter tido culpa em tudo isso, mas poderia ter dado um jeito de evitar. Boa sorte com seus sobrinhos, titia', já a outra passava a mensagem de 'Pare de ser dramática, existem mais três bilhões de homens no mundo'. E eu não sabia qual escolher.
– Terra chamando Sophia!
Greg estava com a mão na boca, imitando algum som mecanizado. Percebi então que ele estava me chamando há algum tempo.
– É a sua hora de colocar a estrela. – ele disse.
Em uma caixa de papelão à minha frente estava escrito com caneta vermelha os dizeres 'Coisas de Jesus'. O conteúdo não se tratava de Bíblias, diferente do que você possa imaginar, pois eram apenas os enfeites de natal. Fitei uma grande estrela dourada dentro da caixa. Agarrei-a com cuidado.
Eu não conseguia parar de pensar. Quer dizer, eu era uma pessoa tão boa! Nunca faltava na escola, tirava boas notas (exceto em artes, onde a professora nunca conseguia entender o que eu queria dizer com minhas criações), nenhum namorado roqueiro ou drogado, sem filhos inesperados até o momento, e eu ainda ajudava certos senhores de idade a atravessar a rua quando eles ameaçavam-me bater com suas bengalas. Por que então – me diga, Deus! – eu era castigada deste jeito? Tinha acontecido uma espécie de reunião com o Senhor, algumas madames e um par de ovelhinhas, que havia decidido 'Vamos castigar a Sophia' e, por alguma razão, eu não estava sabendo? Era o que parecia.
Sempre alertaram-me que o pão cai com a Nutella virada para baixo. No caso, eu era o pão ou a pasta de amendoim? Ok, péssima metáfora. Até porque a fatia de pão cai virada para baixo devido ao peso. É só física. ENFIM.
Eu estava indignada com Deus e suas ovelhinhas. Não que a culpa fosse dele mesmo, porque ele devia ter coisas mais importantes do que os rumos de minha vida para decidir, mas o fato é que alguém estava querendo me irritar, e tinha conseguido. Por que?! Por que?! Eu não era uma pecadora! Ou talvez fosse tudo culpa do diabo.
– Sophia?
Cecília chamou meu nome.
– Não quero colocar a estrela. – falei com segurança. – Muito menos comemorar o natal. Estou brava com todos os personagens dessa escultura aí. – apontei para o nosso presépio. – Chegou seu dia de sorte, Gus.
Alcancei o objeto dourado para meu irmão que tentou disfarçar, mas sentiu-se alegre com aquilo.
– Tenha cuidado com isso, menino! – gritou Mia.
Por incrível que pareça todos estávamos ao redor de nossa árvore de natal de um metro, paga em doze vezes sem juros. Reuniões familiares não eram comuns naquela casa cor de uva.
– Já sei, já sei. – ele reclamou. – O menino Jesus está me julgando. Bla, bla...
Peguei um leve agasalho, estava ventando fraco naquela manhã. A televisão ligada no noticiário estampava a cara do repórter, que contava a história do crime mais recente. A parte que escutei foi essa:
'Mais um crime volta a chocar a cidade. Nesta manhã foi encontrado o corpo de um homem branco, aparentemente de 30 anos, dentro da mata da floresta central. Segundo a polícia, o indivíduo ainda não identificado estava há alguns dias morto. Ele foi encontrado com uma pedra ensangüentada ao seu lado, e a face desfigurada. Os exames de DNA já estão sendo feitos. Voltaremos a qualquer instante com novas informações.'
Cruzei os dedos e pedi em silêncio para que nada de mal tivesse acontecido com o meu Jonas. Tudo bem que o sujeito aparentava ter trinta anos, mas com o rosto desfigurado, qualquer um poderia ser confundido. Talvez fosse mais um crime mandado pelo pai do garoto do parque. Talvez não.
Ignorei a televisão, deixando Deus bem avisado, pois eu estava há um passo de querer 'dar um tempo' com a nossa relação. Rumei em direção à porta principal.
– Aonde você vai, Amora? – perguntou minha mãe.
Sei lá, mas esses momentos familiares deixavam Mia menos estourada. Tudo era conseqüência de seu humor e do grau de bipolaridade de cada dia, mas parecia que aquele clima natalino estava a afetando.
Pensei um pouco. Minha mão estava agarrada na maçaneta.
– Vou acertar as contas com Deus. – falei, olhando para a sua expressão confusa.
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O Menino debaixo da minha cama
Teen FictionSophia é uma garota de dezesseis anos comum, diferentemente de seus problemas. Sua irmã está grávida do namorado motoqueiro, o bebê que a sua mãe teve durante o segundo casamento a faz acordar todas as noites, e o irmão caçula... Bem, ele é o caçula...