Capítulo 85

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A morte é doce, diferentemente do que você possa imaginar. Posso ainda afirmar que é rápida e dói bem menos do que sentar na cadeira do dentista. Quando a vida acaba para você, outras tantas estão começando para diferentes pessoas no mundo todo. É assim que as coisas acontecem, e você sabe que mais cedo ou mais tarde a sua vez chega. Mas eu repito confirmando: A morte é mais doce que açúcar.

Eles transportavam o meu caixão rapidamente alguns dias depois do fim, e eu diria que se estivesse viva, com certeza estaria reclamando pela falta de cuidados. Sempre pensei que quando morresse as pessoas que o levariam seriam aquelas queridas por mim. Você sabe, papai, irmão, amigos e tal. Mas, para ser bem sincera, o meu funeral estava sendo muito semelhante ao de Jonas. Poucas pessoas. Somente as necessárias.

Andei até perto daquelas almas que eu amava tanto. Todas estavam com os olhares vidrados naquele retângulo de madeira decorado. A pequena janelinha de vidro dava visão para o meu corpo morto ali dentro. Era tão estranho estar de frente comigo mesma. Os meus lábios estavam roxos demais, o meu rosto estava plastificado. Eu estava horrível.

Aparentemente, nenhum padre estava presente, e isso era um bom sinal. Todos conheciam-me bem para saber que eu não gostaria de um ali. Mas alguém precisaria falar algo. Sabe, para abafar o choro alto de Cecília. Greg foi aquele quem decidiu por fim dizer algumas palavras:

– Sophia não gostaria que ficássemos tristes. Ela pediria para que vivêssemos nossas vidas normalmente, não arranjando tempo para chorar. – uma lágrima escapou de seu olho. – Acontece que nenhum de nós poderia atender o seu desejo agora. A dor toma conta de todos, e não deixamos de pensar por nenhum segundo como será difícil conviver sem o seu sorriso tímido e seu olhar retraído. Sabemos que é apenas a ordem natural da vida, mas nunca pensamos que...

Ele não conseguiu terminar. Greg abaixou a cabeça e levou os dedos até os olhos encharcados. O meu padrasto estava derrotado, e eu não suportava vê-lo triste. Mia estava ao seu lado, dando curtas palmadas nas costas do homem choroso. Ela escondia-se atrás de seus óculos escuros, e provavelmente nenhuma lágrima saía dali. A mulher certamente sairia como heroína de toda a história, como se tivesse matado o meu assassino. Ninguém nunca saberia de tudo que eu escutei. Acho que, no fim de tudo, era melhor assim.

Ben abraçava Virgínia com muita força, pude perceber isso pelos seus dedos avermelhados. Sendo um espírito, eu podia saber que ele imaginava estar envolvendo os braços em volta de meu corpo. Não que ele não gostasse de minha melhor amiga, apenas era que... Bom, talvez ele gostasse um pouco de mim.

Eu nunca deixaria de arrepender-me por ter deixado-o, pois ele sem dúvidas faria falta 'do outro lado'. Mas eu havia escolhido pelo meu amor, e agora não havia volta.

Ainda utilizando meus dons de pessoa-morta, podia enxergar o que estava no futuro de meus melhores amigos: Dois filhos tão lindos quanto eles.

Abandonei as lágrimas de Virgínia e a raiva de Benício para observar Gustavo. Ele estava como sempre: Olhar compenetrado e sério. As suas mãos entrelaçadas não mostravam nenhum movimento, e eu sabia que ele sabia que eu ainda estava ali. Meu espírito.

Sam tentava acalmar Cecília, e essa claramente era a tarefa mais difícil de todas. Os abraços e beijos na testa que ele oferecia pareciam inúteis. Minha irmã estava mais emotiva do que qualquer um, e todos podiam entender o seu sentimento único de dor. Queria conversar com ela e deixa-la em paz. Queria voltar no tempo para explicar que eu estava indo. Queria apenas que o tempo passasse ligeiramente para que todos pudessem esquecer de mim logo.


Gustavo pegou nas mãos de Cecília um pouco antes de ela quase inundar o cemitério. Seu olhar fixo foi direto e certeiro.

– Sophia está aqui. – sussurrou para a minha irmã.

Ela obviamente não entendeu, mas, com isso, não me preocupei. Sabia que ele teria um enorme trabalho em explicar tudo para ela. Esse seria o único jeito de fazê-la entender o que havia acontecido.

– Ela precisou ir. – completou.


Sentada em um túmulo perto do meu, reparei aquela cena curiosa. A minha família com toda a certeza era a melhor de todas. Sabia disso por conta do caminhão que descarregava centenas de flores dentro do cemitério. Os homens que costumavam me amar as transportavam até perto de meu caixão já abaixo da terra. As mulheres observavam. Até os dois trabalhadores do cemitério estavam lá, prontos para jogarem terra em cima de mim. No fim de tudo, era mesmo exatamente como eles diziam: Gente morre a toda hora.

Reparei mesmo foi em Cecília. Ela estava sentada em sua cadeira de rodas, imitando quase que perfeitamente o olhar petrificado de Gustavo. Este era direcionado para o meu caixão. Ela procurava por algo, tentava entender alguma coisa. Não sei o que a loira queria, mas parecia estar determinada.

Quando as flores foram ajeitadas certamente em seus lugares, a minha irmã falou com Gustavo. Ele assentiu, e então abaixou-se para agarrar um punhado do monte de terra que esperava para cobrir-me. A cadeirante juntou as mãos, recebendo um pouco daqueles grãos.

– Sophia... – li os seus lábios sussurrarem.

Cecília fechou os olhos e expressou feições de dificuldade. Depois, aos poucos, ficou em pé. Ela andou. Dois passos. Sorriu e jogou o punhado de terra sobre o meu caixão. Sam chegou a aproximar-se, pronto para segura-la pelo braço.

– Eu estou bem. – ela falou. – Eu estou caminhando.


Nesse mundo há apenas duas palavras que ninguém sabe definir: Amor e melancolia. O dicionário atreve-se a estabelecer que a definição da primeira é 'afeição profunda', mas eu acho que seria errado demais dizer que um sentimento tão inconstante não passe de pura afeição. É algo maior. Muito maior. Já quanto ao segundo, ele afirma que se trata de 'tristeza vaga'. Errado também.

Melancolia e amor são dois sentimentos difíceis. Distintos, tortuosos. Não há quem possa defini-los com exata precisão, pois por mais que os sinta na maior das intensidades, nunca conseguirá traduzi-los em palavras.

Mas aí entra a minha vez. E você, mais do que qualquer outro, já deve saber, nesta altura da história, que eu preciso definir tudo que vejo, sinto, ouço, falo. Talvez não esteja certa em nenhuma das vezes, mas eu não teria medo algum em afirmar o que essas duas palavras verdadeiramente representam. Eu já as senti. Quer dizer, o amor foi tão forte para mim, tão rápido, tão momentâneo, tão eterno, tão tudo. Derivando-se dele, surgiu a melancolia. Esta que foi tão transitória, dolorida, constante, tão nada.

E talvez seja exatamente essa a razão pela qual ninguém consiga definir com exatidão dois sentimentos tão diferentes. Acontece que o amor é simplesmente o Tudo, enquanto a melancolia é absolutamente o Nada.

Cecília andou e eu também. Encontrei a mesma luz que os meus mortos-vivos haviam ultrapassado. Antes de atravessar, olhei uma última vez para o meu caixão. Ele recebia terra, mas eu ainda podia enxergar-me através da pequena janela de vidro.

Lembrei da última música que escutei no aparelho de som que Gustavo ofereceu-me depois de minha última janta. Eu sabia que tinha de escolher a que queria que fosse executada pela última vez. Last of Days, A Fine Fenzy. Eu podia escutá-la ecoar pelo cemitério enquanto a luz me chamava. Observei meu rosto pálido dentro do caixão. Um sorriso leve demonstrava tudo.

Cantavam os Beatles: 'Viver é fácil com os olhos fechados'. E era o que eu fazia até encontrar o meu par. Eu passei a enxergar depois de Jonas, mas então o destino foi traiçoeiro e precisei fechá-los mais uma vez. Porém foi apenas por um curto momento, pois eu tenho certeza de que voltarei a abri-los quando encontra-lo novamente.

E como eu sei disso? Está escrito.

O Menino debaixo da minha camaOnde histórias criam vida. Descubra agora