Como vou viver sem celular, é umas dessas questões da vida para as quais ninguém tem resposta.
Uma semana inteira sem o meu celular me obrigou a reler todos os meus livros para evitar falecer por motivos de tédio.
Reclusa no quarto, passei a semana me dedicando à nova personalidade que desenhei exclusivamente para os meus pais: a típica adolescente rebelde.
Acho ridículo esse tipo de comportamento, mas não tenho outras armas, então escutar rock no volume máximo (meus pais não gostam nem de barulho, nem de rock) e fazer greve de fome (ou fingir), tem que servir.
A parte que mais gosto é ficar até tarde lendo com a luz acesa, por mais que o Kindle tenha sua própria luz, e acordar depois de uma da tarde.
Gosto dessa nova rotina e é isso que pretendo fazer hoje, segunda-feira. Mas minha mãe acaba de entrar em meu quarto pela vigésima vez nessa manhã.
— Eu não vou chamar uma quarta vez — ela arranca o meu cobertor.
— Mãe! — Ergo o corpo na cama, me sentando.
— Eu tentei te acordar de uma forma mais dócil, mas já é a terceira vez que venho te chamar e o relógio não espera. Essa escola nova é muito mais cara e não quero que você perca sequer um minuto de aula. — Ela dobra o edredom de um jeito estranho que mais parece algo feito pelo meu pai, vai até o armário e o coloca na parte de cima.
Eu detesto a parte de cima. Não alcanço e ela sabe disso. Lanço-lhe um olhar furioso.
— Levante-se, tome um banho e arrume esse cabelo de vassoura. Mas seja rápida, seu pai está esperando — dito isso, ela fecha o armário, caminha até a porta e saí, deixando a porta aberta.
Deixo o corpo cair para trás e suspiro alto. Sei que preciso ir para a escola. Se perder de ano jogarei água no meu plano de finalmente começar a ter uma vida: ir para a faculdade.
É pensando nisso que me apronto. Não do jeito que minha mãe mandou, quero dizer, até tomo banho, mas visto a camisa que ela detesta: a antiga camisa do time que o meu pai jogava na faculdade.
Ela é bem confortável, sabe? Principalmente por causa dos furinhos de desgaste que permitem a entrada de ar. A calça jeans que escolho é mais velha que a própria palavra calça. E o tênis preto precisa de uma lata de lixo.
— Graziella, que roupas são essas? — indaga meu pai, quando me sento no banco do passageiro.
— Não reconhece? Essa é a sua camiseta favorita.
— Era, quando ainda era digna de ser chamada de camiseta. Vá trocar essas roupas, pelo amor de Deus.
— Sua esposa disse que você está atrasado — arranco um fio de linha da calça. Há muitos desfiando.
Ele suspira esfregando os dedos na testa. Isso me causa um desconforto estranho. Eu não sou de me comportar como uma adolescente rebelde, mas meus pais estão merecendo esse tipo de filha depois de a fazerem se mudar pela segunda vez no ano.
É difícil manter amizades quando se é nômade. E a primeira vez que eu estava quase começando a fazer amigos, meu pai me arrancou de perto deles.
— Se quer causar má impressão no seu primeiro dia de aula, é você quem sabe — ele liga o carro.
Engraçado o jeito como ele fala "primeiro dia de aula" como se fosse grande coisa. Para quantos primeiros dias ele me levou? Quatrocentos mil.
Meu pai liga o rádio e coloca na estação mais legal de todas: a de notícias.
•
— Essa é Graziella, a nova colega de vocês — o professor me apresenta para a turma, depois de ter me obrigado a ficar de pé. — Seja bem-vinda!
Recebo olhares curiosos, amistosos e até alguns maldosos, mas não ligo. Já passei por esse momento vezes demais e estou acostumada.
Passo todas as aulas sozinha no canto de uma sala cheia; passo o intervalo sozinha no enorme refeitório lotado; traduzindo: passo a manhã cercada de pessoas e ao mesmo tempo completamente sem ninguém.
Mas estar sozinho, ao contrário do que muitos pensam, não é ruim. Como filha única, passei a vida tendo como companhia a mim mesma e os meus brinquedos.
Quando era mais nova, costumava desejar um irmão. Meu pedido a cada vela soprada, cada estrela cadente, cada poço dos desejos, era sempre o mesmo: um companheiro. Isso era o que eu esperava de um irmão, parceria e cumplicidade. Seríamos uma dupla e eu não mais me sentiria só.
O fato é que eu cresci e parei de desejar um irmão. Não seria justo com ele ter uma vida daquelas. Ele merecia viver de verdade. Ter amigos. Criar laços.
Quando o sinal toca alto anunciando o fim do dia letivo, caminho para fora da escola tentando não ser esbarrada por ninguém e encontro um canto para esperar pelo meu pai.
Após dez minutos de espera, decido que é melhor me sentar.
Vejo cada um dos carros saírem até o fluxo diminuir. Quarenta minutos depois, me torno a única alma viva na frente do colégio.
Meu pai acha que tenho cara de palhaça?
Fico de pé, resignada, e decido que não vou esperar mais um segundo sequer.
O caminho de vinda pode ter parecido um pouco longo, mas isso é só por causa daquela sensação que temos quando estamos indo para um lugar pela primeira vez. No fim a gente sempre fala: "Olha só! A volta foi mais rápida que a ida!".
Caminho a passos decididos, pois tenho plena certeza de que em poucos minutos estarei em casa falando exatamente isso.
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O garoto dos olhos avelã
Teen FictionGraziella tem uma imaginação para lá de fértil, vive no mundo da lua e, por vezes, acaba se enfiando em situações embaraçosas. Sem planos de se apegar à nova cidade, ela sabe que a promessa de permanência do pai é daquelas que não se deve levar à sé...