O dia mal começou e minha vida já está sob ameaça.
Acontece que, na entrada da sala, estava com os olhos focados em minhas anotações de matemática e esbarrei em Lia. Pedi desculpas e corri para um assento qualquer, evitando seu olhar a todo custo.
Durante a aula de história, percebo vagamente um debate entre a professora e meus colegas, mas estou concentrada demais em revisar os cálculos que fiz com Luke ontem.
Por falar em Luke, eu o vi mais cedo no parque, mas ele não me viu porque estávamos correndo no mesmo sentido e eu estava muito atrás. Nem queria alcançá-lo mesmo.
Assim como da outra vez, fiquei estafada e colocando os órgãos para fora pelo nariz, mas isso foi aos vinte e dois minutos de corrida e não aos vinte. Um grande avanço, se você quer saber.
— Eduarda e Diego. Vanessa e Paula — a professora está fazendo a chamada em uma ordem esquisita e parece que ninguém está gostando muito, pois há uma onda de reclamações constantes.
Nem ligo, pois minha prioridade agora é revisar esses cálculos.
— Graziella e Lia.
— Presente — respondo distraída. Meio segundo depois, uma chave gira em minha cabeça.
Não é chamada. A professora está sorteando duplas para o trabalho sobre a Segunda Guerra Mundial.
Olho para o outro lado da sala, onde sei que Lia está, e a vejo virar a cabeça lentamente em minha direção, sem mover o resto do corpo.
Nossos olhos se encontram e eu tenho apenas uma certeza: vou perecer.
•
Assim que a última aula acaba, Lia vem até a minha mesa.
— Na minha casa. Às duas — determina e sai.
Eu na casa de Lia? Por que eu não cavo logo uma cova e me deito dentro?
Me levanto depressa e corro atrás dela. Alcanço-a no fim do corredor.
— Não. Na minha casa — digo apressadamente.
Ela se vira para mim.
— Como é?
Recuo.
— É que... minha mãe não me deixa sair de casa para nada, nadinha. Só para a escola e mesmo assim às vezes ela nem me deixa vir — minto.
Ela faz cara de quem está olhando para uma pessoa mentalmente incapacitada.
— Tá, me passa seu endereço.
Puxo o caderno da mochila, anoto na última folha e entrego o pedaço de papel para ela.
Ela recebe, se vira e continua andando.
Fecho os olhos sentindo o desespero tomar conta.
— Essa não é a cara de alguém que foi bem na prova.
Abro os olhos e encontro Luke chegando ao meu lado.
Meu humor muda instantaneamente.
— Você não vai acreditar! A maioria dos cálculos que fizemos ontem caíram na prova! Exatamente iguais! E eu revisei tanto! Acho que acertei quase tudo!
Luke ri da minha empolgação.
— Eu disse que você ia conseguir — ele levanta a mão para mim e eu bato imediatamente.
— Não conseguiria se não fosse por você. A propósito, obrigada mais uma vez.
Ele faz o gesto de continência com a mão na testa, como quem diz "às ordens".
— Quer carona para casa?
— Quero! — No segundo seguinte, percebo que saiu empolgado demais. — Quero dizer... aceito se não for incômodo.
Seguimos juntos para o estacionamento.
Em alguma rua no caminho, quando passamos de carro por Lia, afundo no banco e coloco a mão na lateral do rosto para impedir que ela me veja e atire uma pedra na janela.
Luke levanta uma sobrancelha em questionamento.
— Essa menina me odeia — explico.
— Nem imagino o motivo — ele ri.
Me endireito no assento quando o perigo fica para trás.
— Acredita que ela foi sorteada para ser minha dupla no trabalho de história? E quer fazer hoje, justo o dia que minha mãe não está em casa. Compre umas flores porque ao fim do dia você vai estar à caminho do meu enterro.
— Ah, sim, você deu a ela uma boa razão para cometer assassinato — ironiza.
— Para de zombar, tá bom?! Lia está furiosa pelo suco que derramei nela e só está esperando a oportunidade para se vingar de mim.
— Acha que ela vai fazer algo contra você?
— Eu não tenho dúvidas! Vamos ficar sozinhas em minha casa para fazer esse trabalho de história ridículo. É a desculpa perfeita para ela poder fazer algo bem ruim comigo.
— Tipo te matar usando um lápis?
Não acredito que ele está referenciando John Wick, o filme em que o protagonista mata três homens usando apenas um lápis. Garoto insensível.
Lanço-lhe um olhar furioso.
— Tipo cortar meu cabelo todo torto e tingir de roxo.
— Você assiste muita novela, não é?
— Você está achando graça, mas é assunto sério. Eu não conheço essa cidade, não conheço as pessoas, Lia pode muito bem fazer parte de uma gangue. E se eu precisar pedir ajuda, minha mãe não vai chegar a tempo.
— Acho que escuto da minha casa se você gritar por socorro — e ele continua debochando.
Mas dessa vez as palavras dele me deixam interessada.
Observo-o girar o volante para dobrar a esquina e entrar em nossa rua.
— Será que você escutaria mesmo? E se você estiver com fones de ouvido?
Luke tira os olhos da direção para me encarar com as sobrancelhas franzidas.
— Você realmente acha que está em perigo? — dessa vez ele não está caçoando da minha cara.
— Sim, Luke — é a segunda vez que falo o nome dele e já quero a terceira.
O carro para na frente da minha casa.
— Me empresta o seu celular — ele estende a mão.
— Para quê?
Ele continua com a mão estendida.
Tiro do bolso e entrego.
Luke não faz nenhum comentário sobre o meu celular da Hello Kitty e isso é pior do que se tivesse feito. Significa que para ele não é surpresa eu ter um celular assim, é o esperado.
Ele termina de digitar e me devolve.
— Pronto, agora você tem o número de alguém que pode chegar a tempo caso você peça ajuda. Basta uma mensagem e eu coloco minha capa e vou te salvar.
Sinto uma vontade involuntária de rir ao lembrar da nossa conversa da noite anterior.
— Que eu saiba o Homem-Aranha não é um herói que usa capa.
— Posso ser o herói que você precisar — ele brinca.
Não importa que seja uma brincadeira, a frase me deixa toda bagunçada.
— É... obrigada pela carona — digo nervosa e abro a porta do carro.
Enquanto percorro o caminho até a porta de casa, meus dedos apertam forte o celular em minha mão e eu só consigo pensar em uma coisa:
Eu tenho o número de Luke.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O garoto dos olhos avelã
Teen FictionGraziella tem uma imaginação para lá de fértil, vive no mundo da lua e, por vezes, acaba se enfiando em situações embaraçosas. Sem planos de se apegar à nova cidade, ela sabe que a promessa de permanência do pai é daquelas que não se deve levar à sé...