Quem nunca mentiu que estava doente para não ir à escola que atire a primeira pedra.
Diante do olhar atravessado da minha mãe, forço uma tosse com todo o meu talento teatral até ficar vermelha.
Sei que ela não está acreditando, mas não desisto da encenação. Só vou para a escola arrastada. Não sou louca de arriscar meu pescoço por vontade própria.
Ontem, depois de ter corrido feito uma tonta do refeitório, fui até a secretaria da escola e pedi para ligarem para o meu pai e informarem que a filha dele estava passando mal. Não acreditaram na minha atuação, mas ligaram e ele foi me buscar. Ele também me olhou desconfiado, pois não era a primeira vez que eu executava tal manobra.
Foi assim que consegui passar o resto do dia de ontem em casa. Mas como a vida não é um morango, hoje minha mãe não parece nada convencida.
— Que tosse de fumante é essa? — ela cruza os braços.
— Talvez esse seja o meu último dia de vida. Quer que eu o desperdice na escola com aquelas pessoas sem importância ou que eu fique em casa e aproveite minhas últimas horas com você? — E toma mais tosse de fumante.
Ela apoia um cotovelo em uma mão e o queixo na outra. Me olha demoradamente sem nada dizer, então meneia a cabeça e sai.
Volto a dormir.
Quando ela retorna já é bem tarde. Sei disso por causa do calor dentro das cobertas e pela sensação de rosto inchado, por ter dormido demais.
— Vamos, bela adormecida, levanta — ela puxa meus cobertores, seu hobby favorito. Mas dessa vez eu fico grata.
— Hummmm — espreguiço-me demoradamente.
— Se arruma depressa. Vamos almoçar fora — avisa e sai, mas não antes de colocar o cobertor na parte alta do guarda-roupas. PARA ME IRRITAR.
— Mãe! — Jogo um travesseiro na porta que ela deixou aberta.
Pulo fora da cama. A notícia de comer fora é boa, pois estou faminta e a falsa greve de fome não está com nada.
Ao chegar na sala, anuncio:
— Estou pronta.
Meu pai ergue as sobrancelhas com uma expressão de desgosto.
— Você vai assim?
Pijama com estampa de bananas, cabelos desgrenhados e pantufas de urso nos pés.
— Vou.
Ele olha para a minha mãe, que está fechando o zíper da bolsa embaixo do braço. Ela apenas dá de ombros.
— Tuuudo bem — ele pega as chaves na mesinha. — Vamos logo, porque estou com a fome de uma grávida.
— Tosco — ela reclama.
Eles saem na frente e eu ando devagar de propósito, com uma mão acima das sobrancelhas para proteger os olhos do sol.
Ao rodar o veículo, minha intenção é embarcar do lado errado para provocar o meu pai. Mas assim que chego do outro lado, me deparo com o garoto saindo de dentro de um carro cor prata.
Seus olhos me percorrem de cima a baixo.
Sinto que meu rosto é mais quente que o sol e mais vermelho que Marte.
Meto a mão na maçaneta e entro depressa, de um jeito todo desengonçado.
— Quero trocar de roupa! — Estico a mão para frente, sacudindo-a em sinal de urgência, pois meu pai está virando a chave.
Ele busca meus olhos pelo retrovisor.
— Mas você está linda, filhota — ele larga a chave.
Como passam-se alguns segundos e eu não saio do carro, ele ergue uma sobrancelha.
Me faço de doida e continuo olhado para ele. Não exatamente para ele. Estou é usando a minha visão periférica para acompanhar o garoto entrar em sua casa.
Assim que a porta da casa dele se fecha atrás de si, pulo para fora do carro.
— O que você está dando para essa menina? — pergunta meu pai.
Minha mãe ri, o que me deixa ainda mais irada. Ao passar na frente do carro, lanço um olhar raivoso na direção dos dois e sigo correndo para casa.
O plano de fazê-los passar vergonha saiu pela culatra. Maldito garoto dos olhos avelã.
•
Ao chegarmos no restaurante, meu pai anuncia que tem uma surpresa para mim, mas que terei que comer entrada, prato principal e sobremesa antes de ele revelá-la.
Isso quer dizer que eu como tudo às pressas e a sobremesa desce em minha garganta tão rápido que eu mal sinto o sabor do Petit Gateau.
— Pronto — anuncio de boca cheia, repousando a colher no prato.
Minha mãe arregala os olhos, parando sua colher à caminho da boca.
— Grazy, o garçom acabou de servir a sobremesa — diz assustada.
— Sim, e estava uma delícia. Agora, qual a surpresa? — Inclino-me com as mãos sobre a mesa.
Meu pai estica o braço para pegar algo no chão.
Fico ereta na cadeira, tentando conter a ansiedade.
Quando ele levanta uma sacola dourada, sinto meus olhos brilharem.
Minhas mãos vão parar nas bochechas, pois se eu não segurar algo vou acabar avançando sobre a mesa para tomar a sacola. Com selvageria e tudo.
Ele coloca a embalagem na minha frente e eu a agarro. Só não saio rasgando tudo porque, afinal, estou ganhando um presente e preciso encenar a educada.
— Compraram presente para mim?! — minha voz sai aguda de felicidade.
Encontro uma caixa retangular e logo concluo que é um celular. Arranco a tampa de uma vez.
Meu sorriso murcha.
Sim, é um celular. Rosa. Com desenho da Hello Kitty sobre o teclado.
Teclado! Quem usa celular com teclado? Quem ainda vende celular com teclado?!
Fico parada encarando o objeto ridículo. Meu dedo passa por um botão que aparentemente tem sensor, pois a tela se acende exibindo uma foto minha no papel de parede.
— Gostou? Eu disse a sua mãe que ele era a sua cara.
Fecho a cara. Mas não vou dar a ele gostinho de se divertir às minhas custas.
— Eu adorei — começo a teclar no celular como se fosse meu há eras. — Já vou salvar o contato do cara que conheci hoje na escola.
O sorriso dele desaparece.
Um novo objetivo de vida surge para mim como se eu estivesse jogando The Sims: arrumar o número de um garoto para poder ligar para ele na frente do meu pai.
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O garoto dos olhos avelã
Teen FictionGraziella tem uma imaginação para lá de fértil, vive no mundo da lua e, por vezes, acaba se enfiando em situações embaraçosas. Sem planos de se apegar à nova cidade, ela sabe que a promessa de permanência do pai é daquelas que não se deve levar à sé...