NOVA VERSÃO - PREFÁCIO

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QUANDO EU ERA PEQUENO, ME ENSINARAM A REZAR,

E todas as noites eu juntava as mãos para, entre bocejos, aquela velha cantiga pedir, em voz de segredo, para ser um menino normal. Eu não sabia o que era normal, mas sabia que não era eu.

É por isso que eu luto.

QUANDO EU ERA PEQUENO, ME ENFIAVAM EM VESTIDOS,

Me enfiavam em saias, enfiavam bonecas que eu não queria, em mãos que eu não queria e me chamavam de mal agradecido se eu ousasse chorar. E eu buscava refúgio nos livros porque, naquelas entrelinhas, eu podia ser um príncipe e não uma sombra impotente, preso na torre da minha própria mente.

É por isso que eu luto.

QUANDO EU ERA PEQUENO E TIRAVA A CAMISA,

E jogava bola e trepava em árvores, me diziam que isso não era coisa de mocinha e eu não entendia... Porque eu não era e nem queria ser mocinha. Porque minha pretensão do que ser quando crescer era ser moleque.

É por isso que eu luto.

QUANDO EU ERA PEQUENO, MAS MENOS CRIANÇA, ME DOEU SANGRAR.

Me doeu sangrar porque aquilo não era joelho ralado de queda de bicicleta, não era cara esfolada de tropeçar jogando bola, não era fratura exposta de ter subido alto demais em galhos, tentando tocar o céu. Aquilo era punição por um crime que não cometi. Porque quando minha família sorria, dizendo que naquele dia, eu tinha me tornado mulher, eu chorei a ponto de vomitar, sabendo que nunca mais... Nunca mais... Nunca mais poderia ser moleque.

É por isso que eu luto.

QUANDO EU ERA PEQUENO, MAS CADA DIA MENOS CRIANÇA, EU MUDEI DE TODOS OS JEITOS ERRADOS.

Meu corpo criou curvas, sinuosidades, nuances que me enojavam olhar no espelho porque aquele não era eu. Porque cada olhar, cada toque, cada gesto de afeto direcionado a esse corpo era como uma sentença sendo pronunciada de novo, de novo e de novo... Prisão perpétua em um corpo mentiroso e pena de morte à alma discordante. Porque eu aprendi a aceitar, calado, de olhos secos, que ninguém nunca saberia me amar para além desse cárcere privado; que ninguém jamais conseguiria tocar as mãos estendidas, sedentas de minha alma...

É por isso que eu luto.

QUANDO EU ERA PEQUENO, MAS COM CADA VEZ MAIS INVERNOS NAS COSTAS, EU QUERIA ME MATAR.

Eu me sabia surdo, cego e louco; eu me sabia pouco; nunca o suficiente ou sempre demais. Eu me sabia exigente por querer, só uma vez, ser visto, ser tocado, ser exposto. Eu me sabia um peso amarrado ao meu próprio tornozelo, no meio de um oceano infinito e furioso. Eu estava sempre me afogando em silêncios. Todos os dias. Cada dia mais um pouco. E quando a noite começava a rastejar por debaixo de minha perna, eu cortava minha carne, querendo sangrar pelo meu crime, querendo arrancar de dentro desse corpo, esse corpo que nunca foi meu, a semente de tudo que era eu. Porque talvez assim, essa essência de mim, pudesse voar por outros mares. E quando a exaustão me vencia, as ondas me impediam de respirar, eu queria desistir. Eu queria me matar. Eu queria trocar essa cela por um segundo de descanso, por qualquer mentira que se passasse por paz...

É por isso que eu luto.

EU LUTO PORQUE EU TRANSFORMEI ESSA CELA NUM QUARTO.

Numa casa. Porque as minhas cicatrizes viraram obras de arte enfeitando as paredes. Cada uma contando uma história de uma noite em que eu não desisti. Porque eu aprendi que eu tenho uma voz e que essa voz tem palavras e que essas palavras são minhas, que essas palavras tão minhas podem transformar esse corpo em meu também. Eu luto porque eu aprendi a ser maior, maior a ponto de não caber em mim e transbordar para o mundo inteiro ver. Porque eu escolhi ser sobrevivente em vez de vítima. E tão inteiramente meu que não sobra nada para ser da norma. Eu luto para realizar todos os impossíveis, começando por ser o impossível. Hoje eu sou moleque!

Eu luto porque tudo que existe em mim e tudo que eu sei ser e estar é luta.

EU LUTO PORQUE SOU.

Porque somos e porque podemos ser.

Lutemos!

Transcender, por Thiago Uchôa

SINGULAR (degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora