NOVA VERSÃO CAPÍTULO 06

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A segunda-feira chegou cinzenta, fria e apática. A Nina não cansa de dizer que ama esse tempinho mais ou menos, mas eu, particularmente, prefiro o calor. Sempre gostei da sensação do sol na minha pele... Mas só comecei a desfrutá-la, de fato, depois da mastectomia. Meus intrusos* sempre foram um fardo difícil de carregar, que eu tentava, a todo custo, esconder. O dia em que tirei a minha camisa em público pela primeira vez, foi um dos melhores da minha vida. Jamais esquecerei a sensação de liberdade que me inundou; pela primeira vez me senti confortável nessa casca que chamamos de corpo.

Parei de divagar quando o celular apitou, me lembrando da hora. Para variar, estava levemente atrasado para a faculdade. Mal tive tempo de fazer muita coisa. Peguei uma fruta para comer no caminho e corri para o carro. Tentei dirigir da forma mais civilizada possível, apesar da pressa, e até que me saí muito bem. Cheguei a tempo da primeira aula sem nenhum risco de multa, fechada ou desentendimento com algum outro motorista. Assim que estacionei, peguei minha mochila e saí correndo em direção ao segundo prédio. Embora adorasse cursar publicidade e propaganda, dei graças a Deus quando as aulas do dia chegaram ao fim.

O céu continuou cinza durante todo o dia. Fui para casa, onde encontrei minha cunhada mais fissurada no computador que o de costume. Almoçamos juntos e depois de um breve descanso, segui para o grupo de apoio. Cumprimentei Dolores, Martín e Ceci antes de me juntar aos demais na roda. Havia um rosto novo entre nós e Dolores instruiu que sua dona começasse se apresentando. Sentamo-nos todos e ela, ainda tímida, se levantou. Avaliei-a por um momento: alta, de pele clara, cabelos castanhos ondulados e olhos na mesma tonalidade. Perto do seu queixo havia uma marca roxa e eu esperava que não se tratasse de um ato de intolerância, mas esses episódios são mais frequentes do que gosto de admitir.

− Olá... Meu nome é Candela, tenho vinte e dois anos e me descobri uma pessoa trans aos treze. Foi neste mesmo período que os meus pais se recusaram a aceitar quem eu sou de verdade. Não tive ajuda para conter os efeitos indesejados da puberdade, então acabei ganhando pelos faciais e uma voz muito grossa em alguns anos. Fui morar com a minha avó que, apesar de não concordar com nada disso, me respeitava incondicionalmente. Comecei meu tratamento aos dezessete e venho tentando me manter forte desde então. Quando minha avó morreu, precisei voltar para a casa da minha mãe, onde travamos batalhas diárias. Na semana passada, fui agredida ao tentar usar um banheiro público feminino. Nunca, em toda a minha vida, havia presenciado tamanha brutalidade. Depois daquele episódio, fiquei com medo de sair de casa e encarar o mundo de queixo erguido, como sempre fiz. Acho que é por isso que estou aqui – terminou, sem conseguir evitar as lágrimas nos olhos.

− Seja bem-vinda, Candela – dissemos em uníssono.

Dolores pediu a um de nossos colegas mais velhos para falar a respeito da agressão que sofrera na adolescência, ao tentar usar um maiô no lugar da sunga na aula de natação. Eu já conhecia aquela história de cor e salteado, mas sempre que a ouvia, me emocionava muitíssimo. Não gosto do estereótipo de que homem não chora... Na verdade, odeio qualquer tipo de estereótipo. Então chorei mesmo e nem me preocupei em disfarçar. Quis abraçar Candela ali mesmo, prometer que tudo ficaria bem, mas poderia acabar assustando-a ou invadindo seu espaço. Depois de uma agressão, todos ficam preocupados com novas aproximações, principalmente de estranhos. Esperava ter a oportunidade de me aproximar dela com o tempo.

Felizmente, essa oportunidade se apresentou mais rápido que o esperado. Apesar da chuva, resolvi que iria à academia. Eu já havia faltado durante vários dias consecutivos e sabia que se relaxasse, acabaria perdendo o corpo no qual me sentia mais confortável e seguro. Candela parecia assustada com o episódio que havia nos narrado há pouco (e também com a possibilidade de estragar seu cabelo, que estava realmente muito bonito). Ofereci-lhe uma carona e, apesar de relutante, ela aceitou.

Tivemos um papo agradável. Não falamos sobre os problemas com os quais frequentemente nos deparamos e menos ainda sobre nossas transições. Ambos precisávamos de um pouco mais de leveza e acabamos falando de filmes e séries.

− Muito obrigada. Foi um prazer conhecê-lo – ela disse antes de sair do meu carro. Abaixei o vidro, acenei em sua direção e gritei para que pudesse me ouvir.

− Te vejo na próxima semana!

Não são todas as pessoas que voltam ao grupo de apoio depois da primeira visita. A maioria acha perda de tempo. Eu esperava que Candela não fizesse parte dessa maioria, principalmente porque ela me pareceu ser uma garota incrível, apesar de tudo. Eu já estava dando partida quando percebi que ela voltou e estava encostada na janela do carro outra vez. Com um sorriso doce e os olhos mais molhados que o habitual, ela sussurrou na minha direção:

− Muito obrigada, Noah... – e depois de mais um sorriso, finalmente se vai. 

*como homens trans se referem aos seios.

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Amanhã, começarei a enviar os marcadores e pôsteres de SINGULAR para os leitores que usaram o tema #SingularNaMinhaEstante na foto de perfil. E logo mais abrirei o envio para os leitores aqui do wattpad <3 Quem quer mimos do nosso Noah? *-* 

SINGULAR (degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora