Crianças de todo o mundo costumam sofrer muito com a separação dos pais. Mas não eu. Era como se eu não pudesse estar mais feliz com a notícia. Eu não era o filho que Miguel sempre quis ter e tentar sê-lo era demasiado doloroso. Na mesma intensidade que, para ele, era ruim conviver com o meu verdadeiro eu. Afastar-nos parecia uma solução eficaz para evitar mais dor e mágoa.
Minha mãe estava se esforçando para me enxergar e me tratar como eu realmente era. Vez ou outra cometia algum deslize, mas eu não a culpava. Era totalmente compreensível que ela precisasse de certo tempo para se acostumar com a ideia de ter um segundo filho no lugar da menina com a qual sempre sonhara.
A ausência de um pai em minha vida não foi um problema. Minha mãe era uma mulher forte e audaciosa, dava conta de administrar os dois filhos e sua carreira profissional com louvor. Nico, por sua vez, acabou sendo a figura masculina com mais importância na minha vida. Eu o amava, o admirava e esperava poder ser como ele quando crescesse. Com o afastamento do meu pai, nos tornamos ainda mais amigos e companheiros. Com ele ao meu lado, todos os dilemas da adolescência foram resolvidos sem grandes complicações. Inclusive quando comecei a ser medicado para evitar o despertar das características femininas indesejadas da puberdade. A ideia de ter seios, curvas nos quadris, a voz fina... Tudo isso me apavorava. A hipótese de menstruar, então, mais ainda. Eu iria sangrar e sentir dores em prol de um corpo que não me pertencia.
O início do tratamento hormonal foi um período complicado, mas como ninguém nunca me disse que seria fácil, fui forte e aguentei. Eu não mediria esforços para me parecer cada vez mais comigo mesmo; com a versão de mim que, por ora, apenas eu era capaz de ver. E bom, eu fiquei cada vez mais satisfeito com as mudanças que aconteciam. Olhava para o espelho e via quem eu estava me tornando fisicamente: os meus ombros começando a ficar largos, o rosto e nariz perdendo a suavidade de menina, adquirindo um formato mais quadrado e os pelos faciais começando a apontar. Comecei a fazer muita atividade física e uma dieta cuidadosa garantindo que, em pouco tempo, meu abdômen e músculos começassem a se delinear.
Precisei me adaptar com algumas coisas, como o packer, por exemplo, mas não reclamei. Com catorze anos, comecei a fazer algumas pesquisas e acompanhar blogs de pessoas como eu, o que me ajudou muito. Eu fiz a mastectomia − retirada dos seios (ou intrusos) − assim que foi possível, e logo após a cicatrização, tatuei uma tribal sobre a cicatriz, deixando meu corpo ainda mais atraente. Aos poucos, eu me tornava a imagem do homem que sempre desejara ser quando crescer.
Só algo não era concreto para mim, a transgenitalização. Conheci a história de pessoas que mudaram sua genitália da masculina para a feminina e estavam satisfeitas com o resultado. O processo inverso, no entanto, parecia mais complicado e com resultados menos satisfatórios.
Durante alguns anos, a ideia de não poder ter um pênis "de verdade" me incomodou. E muito. Eu ficava martelando a ideia na cabeça, o que não ajudava em muita coisa, para falar a verdade. Até fiquei mais calmo durante a adolescência, mas foi a Nina quem me fez entender, de uma vez por todas, o significado da ausência de um pênis na minha vida.
− Não ter um pênis entre as pernas não faz de você menos homem − ela sussurrou com os olhos bem presos aos meus.
E foi ali, naquele exato momento, que as coisas mudaram para mim. Eu consegui me enxergar através dos olhos dela e eu não só parecia um homem. Eu era um homem e não havia motivos para duvidar disso. Um pênis não me faria mais ou menos másculo, eu precisava me lembrar disso sempre.
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Pelos dias seguintes, enquanto Marcela esteve na capital da Argentina, engatamos uma espécie de amizade colorida. Era fácil e descomplicado, e me fazia muito bem. Na manhã seguinte à nossa primeira noite, lembro de ter acordado completamente nu ao lado dela. Fiquei nervoso, pois estava despido do meu packer e não havia um jeito discreto de me esgueirar até ele sem ser notado. Marcela, perspicaz que só vendo, se virou na minha direção e, de um jeito doce, sussurrou:
− Você continua sendo o mesmo homem maravilhoso. Não se envergonhe do seu corpo, Noah. Ele é perfeito exatamente como é – sua rápida piscadela veio acompanhada de um beijo. Ela se levantou e seguiu em direção ao banheiro, onde instantes depois eu a encontrei.
Quando chegou a hora dela voltar ao Brasil, mesmo que temporariamente, foi difícil me despedir dela, mas me mantive firme e deixei a parte do drama com a Nina. Pouco a pouco minha vida voltava ao normal.
E a Nayara? Lembram que eu estava meio que fugindo dela? Pois bem, ela continuava me procurando, querendo conversar, e eu finalmente resolvi que devíamos nos encontrar para colocar um ponto final no episódio desastroso de quase-sexo que protagonizamos. Busquei-a em seu apartamento e levei-a para um almoço despretensioso. Achei que ela se desculparia e que pediria para isso não abalar nossa amizade, mas surpreendentemente, Nayara estava voltando atrás. Ela se desculpou pelo comportamento inapropriado e me pediu mais uma chance, dizendo gostar de mim.
Fui completamente pego de surpresa. O episódio de quase-sexo seguido da rejeição doeu muito, é verdade. Mas em poucas horas eu já estava com a Marcela, correndo novos riscos e tirando a Nayara do pensamento. E eu sabia que não retribuía aquele sentimento, de modo que não pude prometê-la uma nova chance. Minha amizade sincera (sem ressentimentos ou mágoas) era tudo o que eu tinha para oferecer... E eu esperava que bastasse.
Algo me dizia que apenas o tempo nos traria essa resposta.
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A manhã seguinte chegou de forma preguiçosa. Nina e Nico saíram para um passeio, enquanto eu me afoguei nos trabalhos atrasados da faculdade e em toda matéria que precisava estudar, já que as provas estavam cada vez mais perto. Mandei uma mensagem para Nayara, perguntando como ela estava, e não obtive resposta. No fim da noite, Marcela me contatou via Skype e eu acabei lhe contando dos recentes acontecimentos. Vez ou outra ela fingia ciúmes, o que nós dois sabíamos que era só graça. Ver o seu rosto e ouvir sua voz inconfundível me deixaram nostálgico.
Quando meu irmão e cunhada finalmente voltaram ao apartamento, traziam um sorriso mais largo que a circunferência (incrível) da Nina. Eles me viram conversando com a Marcela e adentraram em meu quarto sem pedir licença. Antes que pudesse protestar, já estavam jogados na minha cama, invadindo nossa conversa e tentando amenizar a saudade. Eles só nos deixaram em paz quando Nina resmungou dizendo que estava com fome. Prometi encontrá-los na cozinha em alguns instantes, mas precisei de alguns minutos a sós com a Marcela.
− Estou realmente com saudade... – confessei, novamente parecendo aquele garoto tímido e abobado. – Não se atreva a sumir, ok? E nem a ter sonhos eróticos com aquele cara babaca do seu novo emprego... – eu lhe arranquei uma risada gostosa e soube que ela andava, sim, sonhando com ele. Embora não estivesse morrendo sinceramente de ciúmes, não gostei muito da descoberta. – Sonhe comigo, sou muito mais interessante.
− Talvez eu sonhe com os dois... Juntos... Nunca fui muito santa mesmo – ela deu de ombros e continuou a rir. Acabei me rendendo e foi difícil me despedir. Ela, prática e nada sentimental, disse que ia desligar e realmente desligou. Céus, essa mulher realmente deve ter a droga da caixa torácica vazia, como garante a Nina. Um segundo depois, recebi uma mensagem escrita.
"Amo você. Boa noite, garanhão!"
Tudo bem... Talvez não tão vazia assim.
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AHHHHHHHHH, MARCELA E SEU FAMOSO CORAÇÃO DE PEDRA <3 Será que eu já estava com saudades SIM OU CLARO? *-* A aparência é de durona, mas o coração é de mocinha, sabemos bem kkkkkkkkkk
Amanhã é dia de clube do livro, na saraiva do Rio Sul :P Quem vai? o/
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SINGULAR (degustação)
RomanceSINGULAR é um spin-off independente de PODER EXTRA G; narrado pelo Noah, personagem secundário da trama que ganhou muitos admiradores. Se você ainda não conhece a Nina, trate de ler sua história e dar boas risadas. Sinopse: Noah sempre quis s...