48 - Badaladas da meia-noite (Parte 1)

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Ao abrir a porta do banheiro, que por sorte — ou azar —, não era compartilhado com ninguém além de sua colega de quarto, Elena quase não reconheceu a figura à sua frente. Emblemática e reservada, Zoya mantinha-se de pé diante da janela, com o olhar fixo em um ponto indeterminado. O cabelo preso em um coque alto reluzia de limpeza e o brilho dele estendia-se pelo resto do corpo, sendo compartilhado com o sofisticado couro escuro da roupa.

Jamais imaginaria que Zoya se empenharia em tamanha produção. A blusa era simples, tinha apenas o diferencial das tiras cruzadas no peito. A saia, por sua vez, abria-se em duas fendas generosas em ambas as coxas. Envoltas por tachinhas, suas botas terminavam em um bico metálico lustroso. Dispensando a tradicional maquiagem, recobrira o rosto com tinta. Listras negras verticais pintadas em sua testa e queixo tornavam seu semblante ainda mais severo.

A elegância e ousadia, contudo, terminavam na arrumação. A seriedade e a morbidez das feições dela impediam maiores repercussões. A capitã podia até ser uma mulher de poucas palavras, mas havia um quê de assustador naquele silêncio.

— Existe alguma chance de você me contar o que se passa na sua cabeça? — questionou Elena, sem reais esperanças de receber a resposta desejada.

— Nada de mais — mentiu.

Apesar de a postura imperturbável impedi-la de se denunciar, o "sexto sentido" de Elena captava a inverdade daquela afirmativa.

— Hum... sei. De qualquer forma, se alguma hora quiser compartilhar, eu sou toda ouvidos. Boatos dizem que quatro ombros dividem um fardo melhor do que apenas dois.

Zoya aquiesceu. Elena estava certa, porém, repartir seus receios seria irresponsabilidade.

— Você está muito bonita — elogiou-a, subitamente mudando de assunto por meio de palavras "impróprias".

O ato imprudente, fruto da quebra de uma das cinco maiores proibições de Rawin, escapulira mais rápido que um piscar de olhos. A modesta demonstração de sentimentos era sinal de que fraquejara. A terráquea, por sua vez, encarava o elogio como uma evolução nas habilidades de comunicação da capitã. O comentário tinha feito Zoya soar como uma pessoa em vez de um robô.

— Você também — retribuiu Elena, tomando o braço dela num enérgico convite. — Vamos?

— Hum-hum — assentiu Zoya, sem expressar as contradições que se digladiavam dentro de sua mente.

Um lado de Zoya a condenava. Considerava-a suja. Errada. Mil vezes errada e culpada. O outro implorava para que ela desconsiderasse as alternativas anteriores. Apelava para algo que estava além das amarras e do punitivismo. Algo que nenhum ferro em brasa seria capaz de destruir.

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Palácio Ausartakus

O palácio dos sonhos — de seus sonhos — estava diante de si. Elena ainda estava atravessando a ponte que conectava a pista de pouso ao acesso principal, mas experimentava uma proximidade inexplicável, como se estivesse a um passo de distância dele. Vê-lo de perto configurava-se mais surreal do que qualquer aventura fictícia que o sono lhe trouxera em tempos passados.

Se pudesse escolher uma oitava Maravilha do Mundo, o Palácio Ausartakus — batizado com o nome do imperador após seu trágico falecimento — sua primeira, talvez única, opção. A imponência das enormes paredes brancas era realçada pelos refletores, espalhados por todos os cantos da área externa.

Agora eu sei por que economizaram tanto com a iluminação do CT. A conta de luz daqui deve vir daquele jeito. Que bom que eles têm dinheiro público pra pagar. Já pensou se fosse com a gente, os meros mortais... Certas coisas só mudam de nome e endereço, pensou Elena, divagando enquanto tirava fotografias mentais para guardar cada pedaço dali em sua memória. Batasuna era mesmo uma prisão paradisíaca.

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