56 - Alma gêmea

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Zoya fazia o possível e o impossível para ajudá-la. Não por obrigação, instinto perfeccionista ou pela natureza de guerreira impelindo-a a extrair o máximo dos recrutas. Ela a ajudava porque adotou para si a responsabilidade de garantir a segurança de Elena, mesmo quando não pudesse a proteger. E temia que a hora de a deixar engatinhar e dar os primeiros passos por conta própria havia chegado. Era imprescindível levá-la a um nível aceitável, a uma autossuficiência.

Tinha feito muito em nome de Elena. Muito.

Havia advogado em favor de Evan quando apresentou o relatório dos testes aos superiores — justificando a infração dele com o adendo de "ato heroico". Fizera vista grossa diante da trapaça de Luuk no Pântano — da pista que facilitou a missão do trio dela. Como se isso não fosse o bastante, também abafara a briga entre os dois pretendentes da moça, correndo o risco de comprometer sua reputação. Tudo isso a troco de quê?

Por que me importei tanto?

Até então, passava seus dias incrivelmente bem, sem se preocupar com nada além de executar serviços impecáveis. Sobrevivera a um alto custo, por conta própria, nunca precisara de ninguém além de si mesma. Nunca contara com algo que não fosse a sua competência.

Então a terráquea apareceu em sua vida. Questionadora, sem um pingo de juízo e com o temperamento de uma chaleira chiando sobre o fogo. Esquentadinha, para ser gentil. E ela merecia gentileza. Principalmente pela simpatia, por buscar conviver tão bem quanto fosse possível com as pessoas ao seu redor.

Admirava-a por ter aturado Luuk e seu jeito eufórico quando Zoya sequer compreendia como o homem mais perigoso de Rawin poderia se assemelhar tanto a um adolescente governado pelos hormônios. Admirava-se de como esta Elena unia gregos e troianos, eutsiano e kreler, rawine e rawine. Fraquejava diante do acolhimento caloroso, das noites em claro compartilhadas, da companhia ora tagarela, ora silenciosa.

Por ter sido baleada ao se recusar a recuar frente a soldados inimigos. Pela coragem — ainda que estúpida, irracional e perigosa — que a conduziu e acolheu aquelas crianças. Por tudo (e mais um pouco) a adorava.

Em seu íntimo, Zoya sabia quais eram as razões de tamanho apego à terráquea. Sabia o porquê de tanto se importar, ainda que não admitisse. Só não podia falar em voz alta, deixar tal coisa emergir ao consciente. Era errado. Errado. Errado. Errado. Infinitamente errado. Sentimentos matam. Sentimentos mataram a terráquea, apagaram a luz de Elena por 20 minutos enquanto ela descia ao Hades junto à alma de Evan.

Zoya a tinha em alta conta, porque, depois da série de infortúnios que vinha sendo a vida dela, Elena demonstrava uma força extremamente diferente da sua. Uma força que disse:

— Nós somos almas gêmeas. — Elena denotava uma certeza absoluta à qual não cabiam objeções.

O termo, comumente associado ao amor romântico, adquiriu uma nova roupagem. Não se tratava de uma declaração ao estilo Romeu e Julieta, embebida de tragicidade. O corpo de Evan nem tinha esfriado. Elena nunca faria algo dessa natureza.

Ela decretara o fato por saber que existia mais de um tipo de amor. Carmen, sua avó, a explicara. Católica fervorosa, colecionava os livros do padre Marcelo Rossi e gostava de falar-lhe sobre o amor ágape. O amor incondicional, generoso, puro, divino. O Amor (com letra maiúscula).

Embora Elena não houvesse herdado a religiosidade da família, acreditava piamente nisso. Acreditava no amor, a despeito do quanto ele lhe fora negado ao longo de sua história — de quanto perdera com a partida daqueles a quem amava.

Naquele momento de luto, de uma desolação tão profunda que pesava o ar, Zoya não se pronunciou. Respondeu-a com um abraço propriamente dito. Ignorando as vozes em sua cabeça, que tanto insistiam em reprimi-la, reconheceu a verdade: Elena era sua alma gêmea. Três em um. Sua primeira, melhor e única amiga. O sol que iluminava sua regrada existência.

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