51 - Amanhã vou parar

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⚠️ Conteúdo sensível: consumo abusivo de álcool⚠️

"Dá-me mais vinho, porque a vida é nada."
Fernando Pessoa, em "Cancioneiro"

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Evan estava ocupado, bebendo tudo o que os androides serviam nas bandejas e sentindo pena de si mesmo. Em seu episódio de autocomiseração, não prestara atenção suficiente em Elena. Reparara somente na dança — íntima demais para o seu gosto — com o rei. Submerso em desgosto, pensara: Até o coroa tem mais chances do que eu agora.

Então, voltou a atenção para o fundo do copo em sua mão. Vazio. Estava esvaziando-os em tempo recorde. E se distraindo na mesma velocidade. Cada gole equivalia a um olhar furtivo na direção oposta à de Elena. Embora fosse de maneira inconsciente, tal olhar buscava alguém em específico. A agitação do oceano em seus olhos não cessou até encontrá-la.

Noutro canto do salão de festas, Tiffy dançava em uma pequena roda, acompanhada por Libby e Mille. O arrependimento o golpeou mais forte do que qualquer soco de Luuk. Tiffy era uma entidade à parte, diante da qual seria impossível não se deslumbrar.

Talvez fosse o esmero da arrumação que o embasbacasse. O vestido de Tiffy estruturava-se como uma obra de arte complexa, com suas nuances, pequenas pregas adicionando textura e diferentes formas ao tecido, e uma solitária fenda na lateral esquerda. Lá estava ela, no ápice da beleza, figurando um segundo nascimento de Vênus, enquanto ele se mantinha à distância feito admirador secreto, corroendo-se por dentro.

Era ele quem deveria estar de mãos dadas com a fada, divertindo-se como o ritmo da música exigia. Contudo, estava ali, cavando a própria cova, acumulando copos vazios sobre a mesa. Perdera duas pessoas incríveis e havia sido inteiramente por sua conta, pelos seus erros.

No ápice da infelicidade, em vez de pegar um copo, arrancou a bandeja das "mãos" do criado mecânico e começou a virar os copos, engolindo com avidez as generosas doses, como quem bebe depressa um xarope ruim só para acabar logo com a angústia do amargor na boca. Quebrara, de novo, a promessa da "segunda-feira sóbria". Esta acabara indo para o ralo, como o resto de sua vida.

Quando estava prestes a dar cabo do "último" drink da enésima rodada da noite, um vulto multicolorido se aproximou da mesa. Com muito esforço, abusou da sua prejudicada visão e fixou o olhar nele. Estava hipnotizado pelo que via, ainda que o que visse não fosse real.

O formato das maçãs do rosto, a boca miúda naturalmente vermelha e as sardas nos ombros o levaram a pensar que fosse ela. Os ombros, entretanto, eram mais largos. Ela era mais baixa e robusta do que recordava. Os olhos tinham pupilas e íris bem delimitadas, de um charmoso azul acinzentado. A franja curta estava tingida de duas cores diferentes: rosa e lilás. As orelhas pontudas tinham somente dois pares de brincos. Na face, um discreto piercing no septo nasal, mais nada. Definitivamente, não era ela.

Demorara para reconhecer que não era Tiffy quem viera prestar socorro. Afinal, fosse pela bebida ou pelo simples pensamento de estar na presença dela, havia abandonado a realidade.

— Ei! Ei! Ei! Ô! Ô! Terráqueo, tá me ouvindo? — Libby estalava os dedos à frente do rosto dele ao final de cada palavra, esperando "despertá-lo" com o barulho.

Evan saiu do transe de repente e piscou repetidas vezes, sentindo a alma retornar ao corpo.

— Já deu a hora de encerrar o expediente, não acha? — sugeriu, cruzando os braços brilhantes, repletos de purpurina, em um gesto de intimação.

— Tsc! — Evan levou a boca à taça, apertou-a com os lábios e inclinou a cabeça, entornando o líquido sem a ajuda das mãos. — Mal comecei — afirmou, com a voz arrastada o denunciando.

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