Levantou-se em um sobressalto, ofegante, à procura de suas oponentes. Em vez do grupo de meninas a atacando e menosprezando, Zoya deparou-se com o quarto vazio. Estranho.
Sob o véu da escuridão, a solidão a cercava. Elena não estava ao seu lado. Os lençóis na cama dela estavam intactos — sinal de que ela não tinha regressado ao próprio colchão. Tudo indicava a ausência dela.
As cicatrizes nas costas, antebraço e mão ardiam, como se houvessem jogado brasas sobre sua pele. Como se estivessem sendo refeitas para envergonhá-la novamente. "Você é nossa", repetia o eco em sua mente. Suas marcas eram um anúncio do que havia acontecido, uma prova de sua desobediência, um alerta sobre o destino dos transgressores.
Após a Cúpula assumir, ou melhor, tomar o poder à força, muitas coisas foram ressignificadas. Os rawines perderam o orgulho sentido ao sofrer ferimentos em combate. O que antes representava a experiência adquirida, agora, era enxergado como um sinal de falha, de fraqueza. Quanto mais imaculado o guerreiro, melhor — visto que isto simbolizava o quão intocável era o produto vendido pela Cúpula.
Sendo assim, embora tivesse a mesma quantidade de pudor que o seu colega — que andava por aí como veio ao mundo —, sempre se vestia com cautela. Roupas sem decotes, de mangas longas e até mesmo luvas. Com aquelas camadas de tecido, contrariava a biologia dos rawines, cujos corpos acumulavam e retinham calor justamente para não serem afetados pelo frio, apenas para esconder seu "fracasso".
Ao contrário do menino prodígio, suas cicatrizes não se limitavam a um insignificante corte no supercílio. Portanto, enquanto fosse possível, evitaria evidenciá-las. Infelizmente, nem o perfeccionismo de Zoya a livraria de encarar seus demônios. Há males que não podem ser ocultados por vestimentas reservadas. É impossível evitar o passado para sempre. A privação de sono era a maior prova disso.
Em noites como aquela, nas quais as memórias assumiam a forma de pesadelos e a atormentavam além do normal, Elena trazia-lhe de volta à realidade. No entanto, naquela hora, a ausência da terráquea abalou-a. Logo ela, que tanto suportou as provações da vida sem ajuda alguma, lamentava a falta da moça.
A humana, a despeito das reservas de Zoya quanto a contato físico, acolhia as dores da rawine dentro de seu abraço. Então, por um momento, o universo parecia um lugar menos cruel. Seu fardo tornava-se suportável quando Elena ajeitava as almofadas e a fitava com seus olhos dourados, esperando a oportunidade de começar uma conversa banal. Graças à perseverança dela, Zoya pôde sentir o gosto da normalidade e esta era uma indulgência preciosa demais para ser perdida. Era preciosa como a própria Elena.
Zoya encontrara nela um tesouro. Por isso, a vontade irracional de protegê-la, mesmo com as limitações impostas pelo seu cargo, tomava conta de si. Por isso, ela precisava descobrir onde Elena fora parar. A terráquea podia até ter se desfeito do sono profundo responsável pelos diversos atrasos nos primeiros dias de treinamento, mas a capitã duvidava que a colega de quarto estaria acordada e se aprontando para as atividades do dia com tamanha antecedência.
Descendo da cama, encostou o pé direito no chão e sentiu-se à beira de um precipício, prestes a enfrentar uma queda livre. Suas neuroses estavam levando a melhor, utilizando-se de artifícios diferentes dos pesadelos. A causa de tais alucinações era conhecida; incertezas e imprevistos nunca lhe agradaram. Entretanto, assombrara-se de verdade por se importar tanto — a ponto de ser bombardeada por sensações anormais — com alguém.
Ceder ao pânico por conta de um problema mínimo era um luxo ao qual não podia se render. Ela dependia de uma mente organizada e coesa para funcionar conforme o esperado. As percepções embaralhadas tinham de sair da equação antes de ela perder o bom senso. Estava fora de cogitação cometer imprudências igual a Luuk.
Não era como se ela sentisse atração pela moça e fosse exalar feromônios, espalhando uma fragrância frutada feito vendedor de perfumes ambulante. Muito menos seria irresponsável a ponto de silenciar alertas importantes em tempos de guerra. Contudo, fizera — e continuaria fazendo — vista grossa para tudo que a envolvia. Isso, sim, era perigoso. E contra as regras.
Errado. Errado. Errado.
Percebendo-se mais afetada do que deveria pelo sumiço dela, Zoya reuniu forças para combater as sensações ruins, vestir o uniforme e sair para procurá-la. Encontraria Elena antes do amanhecer, ainda que tivesse de revirar pelo avesso a imensidão do CT.
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Encontrou-a não muito longe dos alojamentos, sentada sobre a cerca baixa que separava a estrada de ladrilhos dourados da floresta na qual se perdera muitas luas atrás. Pela aparência de Elena, Zoya podia jurar que ela havia corrido uma maratona. Sua experiência, contudo, apontava para uma corrida menos longa e mais dramática.
Atentando-se ao cubo luminoso cortando a escuridão da estrada — que parecia aversa ao conceito de energia elétrica —, Elena pressupôs a proximidade da chegada de Zoya. Em questão de segundos, a capitã saiu das sombras esbanjando sua imponência de sempre.
Elena considerava um crime alguém estar perfeitamente alinhada tão cedo assim. Mas, por se tratar de Zoya, ela relevava o ato. Estranho seria se a rawine saísse do quarto à paisana ou despenteada.
— Você me assustou — revelou Zoya, sem antes ponderar as palavras. — O que pensa que está fazendo?
Elena gesticulou movendo dois dedos, como se estes estivessem dando passadas, para sinalizar que estava correndo. Ótimo, obrigada por denotar o óbvio. Zoya lançou-a um olhar severo, não a deixaria se safar com gracinhas dessa vez. A seriedade da capitã espantou o resto de bom-humor dela, que endireitou a coluna, suspirou e disse:
— Nem todo mundo nasce com aptidão física.
Zoya tomara conhecimento disso anos atrás. O privilégio de ganhar o mundo de mãos beijadas era para poucos. Grandeza, muitas vezes, dizia respeito a um produto do trabalho árduo de um indivíduo. Não era sorte ou um dom adquirido antes mesmo do nascimento. Grandiosidade era sobre persistência. E isso Elena tinha de sobra.
A rawine aprendera cedo o valor de ser persistente. Deparar-se com uma Elena exausta, combatendo os limites de sua humanidade para treinar por conta própria, acendeu dentro da capitã uma luz que ela sequer acreditava existir.
Zoya não podia fazer milagres, mas tomara para si a responsabilidade de fazer o possível.
Assumiu um compromisso com a terráquea. Prometera ensiná-la a dominar o básico e se aprofundaria em algo que ela tivesse aptidão — ainda que isso fosse jogar bolinhas de papel através de um canudo. Naquilo que Elena fosse boa, Zoya garantiria que ela se tornasse excelente.
Desvendaria o talento da colega. Se ela descobrira o dom de manusear facas mesmo sendo uma criança magricela e desprovida de habilidades físicas, havia esperança de atingir esse objetivo com Elena.
Apesar de saber que a sorte não estava a favor delas, planejava triplicar os esforços e aguardar os resultados. Torcia para que Solis as abençoasse. Caso seu plano surtisse efeito, poderia impedir uma tragédia. Elena não morreria nos primeiros cinco minutos de uma batalha real.
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Olár, humanos 🖖
Estão gostando? Eu gosto muito da amizade que escrevi para essas duas (mas sou suspeita e não posso opinar ~risos~). Deem sinal de vida para a autora saber 😆
Não se esqueçam de deixar a ⭐e comentar 💬✶✶✶✶✶✶✶
(1159 palavras)
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Planeta Luz
Science Fiction+16 | Completo | Um acontecimento inusitado leva Elena à maior aventura de sua pacata vida: uma jornada ao Planeta Luz. Perdida neste incrível mundo, ela precisa se encontrar em meio ao caos e lutar contra forças desconhecidas. A força de Elena Fern...