46 - Vamos às compras (Parte 1)

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"Não importa para que lado vá, o preconceito sempre obscurece a verdade."
"12 Angry Men" (1957), Dir. Sidney Lumet

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Caminhava ao longo do centro da cidade acompanhada pelas piores melhores companhias: Hujo e Kai. Desde o importuno acontecimento — se é que poderia ser nomeado assim — envolvendo Evan e Luuk, encontrava refúgio nas faíscas de eletricidade da rivalidade entre o kreler e o batasuniano. O trio de recrutas, que um dia fora razão de sua insatisfação com os pareamentos aleatórios, tornara-se sua salvação.

Não fosse por eles, provavelmente estaria enfurnada no quarto, chorando, inconsolável. Com o agravante de desabar diante de Zoya, que, incapaz de ajudá-la, entraria em silencioso desespero por nem sequer saber dar vazão aos próprios sentimentos.

Naqueles dias, até olhar de relance para Evan estava fora de questão. Quanto a Luuk, durante os poucos momentos nos quais se esbarravam — andando distraídos pelo mesmo motivo — a comunicação era escassa e antinatural. Ambos tinham muito a dizer e não sabiam como falar. Isto a aborrecia ainda mais. Logo ela, amante das letras, sem palavras!

As palavras, entretanto, corriam soltas quando ao lado dos colegas. Quando não estava apartando brigas entre os dois, estava metendo a colher nelas. E divertia-se no processo. Kai e Hujo eram tipos familiares a ela.

Por sorte, não eram familiares o suficiente para desestabilizá-la e afogá-la no poço da saudade da mãe e até mesmo da vida ordinária que levava. Já bastavam as noites insuportáveis repletas de lembranças e sonhos dos quais gostaria de se esquecer como antes.

Salvo as implicâncias, eles eram pessoas agradáveis. Hujo, por vezes, calculava mal (uma vergonha para um engenheiro) o impacto de suas falas. Com frequência, errava a dosagem das brincadeiras. Por outro lado, a mesma prosa desenvolta, quando imbuída de empatia, exercia um efeito positivo e a alegrava.

Para alguém de exatas, Hujo entendia bastante de línguas — e de como aliar a linguagem aos seus modos galanteadores para transmitir receptividade. Ela não o parabenizaria por tal coisa. Dar abertura para a reprise de uma piada digna do "tio do pavê" seria o mesmo que dar asas a cobras.

Seu outro companheiro não ficava para trás na fila das boas surpresas com as quais tinha sido presenteada através da indesejada estadia em Batasuna.

Pondo de lado a indisposição e resmungos, os quais Elena não julgava negativos ou condenava, Kai era um indivíduo interessante. Conhecia peculiaridades daquele universo, mitologias de outros planetas do sistema, nomes científicos dos animais híbridos batasunianos. Era um livro físico ambulante mesmo nunca tendo tocado em um. Daqueles de capa dura, bordas com detalhes em metal e iluminuras.

Elena poderia escutá-lo contar histórias por horas a fio sem se cansar. Certa vez o fizera. Havia sido uma experiência memorável. Além de ter sido expulsa do quarto por Hujo, que, farto da overdose de conhecimento, encerrou a conversa para se dedicar ao sono de beleza dele, por pouco não deixara sua língua solta a comprometer.

Kai lhe contava um acontecimento antigo, importante e tão puído quanto sua calça favorita — de um jeans desbotado e rasgado não intencionalmente. O fratricídio que desencadeou a Grande Guerra era algo familiar para todos do sistema Kontz, das crianças pequenas aos mais idosos. No entanto, o amigo adicionara um extra de "por trás das cenas" neste filme.

As circunstâncias e motivações do assassinato de Nolako não eram de conhecimento público. Pelo visto, esconder certos detalhes fora "o melhor para o reino". O melhor para o rei, diga-se de passagem, concluiu Elena.

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