70 || Lineuzinho

43 7 31
                                    

Reuben, pela primeira vez em décadas, trajou sua velha armadura real — com direito ao elmo de leão e o machado de lâmina dupla para acompanhá-la. Não estava fora de forma, entretanto, sentira-se enferrujado ao vesti-la.

Pusera-a pela última vez na ocasião da conclusão do seu treinamento em armas. Já não era mais um jovem enérgico alimentado pela força da rebeldia. Agora era um homem cansado, de tudo e todos.

Não, não de todos. Sua prole ainda lhe rendia razões para se levantar da cama dia após dia. Não havia nada de tão ruim que um vislumbre do mau humor matinal de Namrud não remediasse.

Até aquele dia.

Nenhum capricho anárquico do príncipe levantaria seu ânimo no momento. Afinal, no meio da madrugada, seu pior pesadelo o pegara de surpresa.

Um demônio saíra do limbo de Umbra e viera infernizar sua patética existência, como se ela não fosse onerosa o suficiente do jeito que estava. Surgira na forma de um recado anônimo, uma mensagem de texto que dizia:

Estou com seu pedaço da Terra. Venha me encontrar para negociarmos os termos do resgate.

Na fúria do momento, sem processar suas emoções, Reuben só conseguiu jogar o aparelho eletrônico na parede e estilhaçar sua tela.

Apesar de não ter remetente, o endereço ao final da mensagem dispensava identificação.

Yamanu basicamente o obrigara a entrar em território inimigo para recuperar o pedaço da Terra que ele nunca deveria ter deixado. Um pedaço de gente com um jeito peculiar de causar por onde passava. Elena.

A terráquea não era qualquer uma. Elena era — rufem os tambores para uma revelação imprevisível e inédita, que nem as mentes mais criativas conceberiam — sua filha. De uma outra vida, por assim dizer. Ainda assim, sangue do seu sangue.

Tinha os inconfundíveis olhos dourados da dinastia Haidetasuna. E seu pavio curto não era herança exclusiva das Fernandes. Elena era teimosa de pai e mãe — principalmente de pai. Teria se dado bem (ou muito mal) com o rei Haran II, pai de Reuben e seu avô, um homem turrão e falador, apaixonado por histórias da Carochinha.

No palco de seus sonhos, gostava de construir um cenário perfeito no qual a família de Carlos e Reuben se encontravam num farto almoço de domingo, sentados em uma mesa de seis lugares coberta por uma toalha de crochê e pratos de vidro marrom.

Elena e Namrud se desentenderiam como bons irmãos — nada no estilo dos ancestrais Zakarra e Nolako. Os dois bicudos, seu pai e dona Carmen, não se bicariam e trocariam ataques passivo-agressivos ao longo da tarde até adormecerem no sofá.

Ele e Luna, sua determinada Luna, escapariam do ambiente doméstico. Visitariam o antigo local de trabalho dela e pediriam um espresso duplo com torta de limão — o mesmo pedido que ele fizera quando se conheceram.

Divertia-se ao lembrar da árdua jornada que percorrera até alcançar o coração da moça de avental sujo e cabelo desarrumado. Reuben, ou melhor, Carlos achava impressionante como ela conseguia se desmantelar todo santo dia. O avental dela era uma obra de expressionismo abstrato. O pavoroso rabo de cavalo frouxo sempre estava torto. A mulher era uma bagunça ambulante. Uma linda bagunça.

Por um ano inteiro frequentou o local, de segunda a sexta, no mesmo horário. A cafeteria ficava no térreo da matriz do Grupo Empresarial Blair, um edifício mais alto que o extinto Empire State Building, onde trabalhava como assessor de Michael Blair — o Gigante da Indústria... que era quase de sua altura.

Esperava tomar coragem e convidar a atendente que sempre colocava um coraçãozinho ao lado do seu nome, no copo térmico de seu café, em vez do típico sorriso ":)" — como o fazia com outros clientes. O cliente fiel que sempre dava gorjetas de R$20 ou mais era uma mão na roda para ela, que sempre chegava ao final do mês com a corda no pescoço.

Planeta LuzOnde histórias criam vida. Descubra agora