58 - De volta ao lar (Parte 2)

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⚠️ Conteúdo sensível: assédio, uso/abuso de álcool⚠️

"Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
'Neste país é proibido sonhar'."

— Carlos Drummond de Andrade, no livro "Alguma Poesia"

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Hospitalidade era o nome alternativo da confraternização pós-expediente. Ocorria na cobertura, onde o acesso era restrito ao pessoal autorizado, na maior sala do prédio inteiro. Brutamontes, cada um com cerca de 2 metros de altura, quase do tamanho de um kreler baixinho, aguardavam-nos de braços cruzados em frente à porta. A Cúpula caprichara nos leões de chácara. Em outra vida, Zoya teria morrido de medo dos seguranças. Em outra vida.

Depois de terem a entrada liberada, cortesia do chefe de transações, estacaram nos degraus de acesso ao salão. Música ambiente, luzes baixas, jogatina e um bar sofisticado. O lugar parecia um pedaço de Krele, não de Rawin. Mulheres de cabelos raspados — pertencentes à classe de Zeladores — perambulavam pela sala, servindo aos homens de confiança da Cúpula.

As moças causaram-lhe considerável desconforto, em especial pelas roupas justas e diminutas. A combinação de minissaia e bustiê brilhante não transmitia a mensagem de "melhor uniforme". Observando-as, assumira que era privilegiada. Ao menos não precisava vestir-se como elas nem aturar apalpadelas em cada parada para servir às mesas.

Partilhando da desconfortável percepção de não pertencer àquele ambiente, Luuk escafedeu-se na primeira oportunidade. Supostamente tivera de ir ao banheiro — caso de urgência —, deixando-a sozinha. Nada havia de novo naquele cenário. A vida de Zoya se resumira a ser o cordeiro em meio aos lobos. Ela os contornaria, evitaria suas presas, sozinha, como sempre.

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O banheiro era uma imensidão cinzenta, adequada à atmosfera maçante da central da Cúpula. Nele não havia divisórias, reentrâncias nas paredes ou artifícios para se esconder. Meses atrás, sequer viria à mente de Luuk a ideia de reclamar do minimalismo, da falta de privacidade, de um banheiro rawine. Agora ele reconsiderava seu posicionamento quanto à importância do pudor.

Fosse a má influência de Elena ou a necessidade de esconder-se naquele momento, aborreceu-se e socou a parede. Os nós de seus dedos latejaram. Ao contrário da alvenaria batasuniana, que se decompunha sob o seu punho a cada soco, as paredes de Rawin eram reforçadas, preparadas para gente de sua raça. A volta ao lar ia de mal a pior e o desnorteara a ponto de enchê-lo de dúvidas.

Para complicar a execução de seus planos, o lugar estava movimentado feito uma feira livre. Ganhara alguns olhares tortos e grunhidos, nada de mais. A ilegalidade das suas intenções, por sua vez, colocava-o em um lugar de constante vigilância. Naquele instante atuava no reboot desnecessário de um hipotético filme autobiográfico.

Então quatro funcionários de alta patente adentrou o banheiro fazendo a maior zoada, tropeçando de tão bêbados. Uma situação no mínimo incomum em se tratando da ideia que tivera da Cúpula durante a maior parte de sua vida. Um sinal vermelho. Tinha de calcular seus movimentos para não levantar suspeitas.

E agora o que eu faço? Isso não vai dar certo. Não assim. Não com essa gente.

Como se livraria deles? Lavava as mãos pela quinta vez, queimando os neurônios. Por fim, chegou à conclusão mais banal e previsível: recorreria ao poder do Pelado.

O incômodo de Evan podia até ser mais discreto do que o de Elena quando o assunto era nudez, mas existia. Contudo, quando o terráqueo retornava das visitas etílicas à despensa do CT, sequer prestava atenção em algo além do próprio umbigo de tão anuviado pelo álcool. O incômodo era nulo, como o seria para qualquer cachaceiro desequilibrado cantarolando canções antigas e falhando na tarefa de achar o zíper da calça.

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