35 - Batata-doce e frango (Parte 1)

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Batasuna, Ilha Begiak

Centro de Treinamento do Exército de Eutsi

A intensificação dos treinos fora necessária, nisso os dois rawines concordaram. Exceto a indisposição geral — justificável, tendo em vista que a maioria dos recrutas não era composta por guerreiros profissionais — e os danos na sala de reuniões do Centro de Treinamento, o primeiro dia do treinamento intensivo corria dentro dos conformes.

A parede perfurada por um soco furioso de Luuk, em resposta à proposição feita por Zoya, parecera um péssimo prenúncio à princípio. A capitã tinha solicitado uma segunda opinião sabendo o quanto ele se oporia. Contudo, a vontade de ter sua estratégia arriscada validada e a insegurança levaram-na a ignorar a indignação do seu imediato.

Expor ideias e argumentos para uma pessoa indisposta foi uma árdua tarefa, entretanto, provou-se mais frutífera do que pensara. Mesmo com a má recepção dele, chegaram a um consenso. Convencera-o com um apelo do qual não se orgulhava de ter se aproveitado, um argumento capcioso envolvendo uma certa terráquea.

No fim, depois de Luuk esbravejar e afundar o punho na parede, recebeu o apoio dele. Então, atingiu-lhe a sensação de que estava no caminho certo. E o caminho certo nunca é o mais fácil, reforçou para si mesma ao caminhar pela estrada de ladrilhos dourados, em direção ao setor de práticas.

Vislumbrou o portal da Arena, no qual as pérolas refletiam a luz do incipiente sol nascente, erguendo-se acima da linha do horizonte, revestindo-se de pompa. Acolheu, satisfeita, o fato de que estava se dirigindo ao lugar onde o treinamento havia começado com o propósito de instituir um novo começo. Era um evento circular e coeso. Isso muito lhe agradava. Dava a sensação de controle, "repelia" os tão odiados imprevistos, deixava tudo nos conformes e, o mais importante, aquietava a alma de Zoya.

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A excepcional tolerância aos atrasos fora o principal diferencial daquele dia. Uma indulgência merecida, para reparar os danos da noite passada em claro, resgatando civis. No entanto, nem mesmo os minutos a mais de descanso puderam reparar os recrutas. O abatimento deles não era apenas uma questão de cansaço físico. Sono algum poderia reparar um espírito abatido.

Perto da arquibancada, divergindo dos demais pela aparente indiferença conferida pelas experiências prévias, Evan e Luuk conversavam como de costume. Então, quando Elena se aproximou deles, interromperam a conversa ao tomar consciência do abismo que os separava de quem nunca havia visto a guerra de perto antes daquela madrugada. Ambos a encararam com estranheza no olhar, questionando-se o porquê de ela não ter faltado a sessão de treinamento a despeito de Zoya ter concedido aos feridos uma dispensa de dois dias.

Elena arrastava-se com passos curtos e remansados, coçando os olhos com o dorso da mão do braço são. Evan logo deduziu o óbvio: ela havia dormido mal. Quem diria que levar um tiro traria uma péssima noite de sono, não é mesmo? A moça tentara se espreguiçar para espantar a sonolência, mas a dor persistente, que se espalhava do peito para o ombro direito, tornara a tarefa impossível.

— Não acha melhor descansar um pouco? Eu duvido que seu ombro esteja 100% recuperado — sugeriu Luuk, cruzando os braços.

— Eu já falei pra ela ficar em repouso por uns dias. Mas ela me ouve? Não! — resmungou Evan.

— Ela sempre é teimosa assim? — Luuk ergueu uma sobrancelha.

— Sempre! Teimosa feito uma mula — confirmou Evan. — Cansei de falar pra ela pegar leve... e a senhorita Elle me faz o que? Insiste que não foi nada — gesticulava com as mãos, transmitindo sua frustração com o comparecimento de Elena ao treino da manhã.

Elena, ainda massageando o lugar no qual recebera um tiro, rebateu:

— Bonito, hein? — meneou a cabeça. — Dando uma de velhas fofoqueiras a essa hora, falando de mim na minha frente como se eu não estivesse ouvindo... Esperava mais de vocês — repreendeu-lhes. — Caso ainda não saibam, sou capaz de decidir por conta própria o que faço ou deixo de fazer da minha vida.

— Ah, sim, longe de mim dizer o contrário. Isso anda dando muito certo ultimamente... — ironizou Evan, desviando o olhar para parecer despretensioso.

— Não diga isso, Evan. Não há porque insinuar coisas. Pra mim, andar sozinha à noite em um lugar desconhecido e voltar machucada é um grande exemplo de uma ótima tomada de decisão. Eu invejo seu discernimento, Terra — provocou-a Luuk, coçando a nuca como se não houvesse dito coisa alguma.

— E quando ela decidiu que era uma boa ideia confrontar soldados experientes armados e levou um tiro? Nossa, melhor ainda! — complementou Evan, crispando os lábios.

— É impressão minha ou vocês se uniram pra torrar minha paciência? Quanto enjoo! — grunhiu. — Talvez eu devesse passar o tempo com os meus novos amigos, pelo menos eles não iriam duvidar da minha sensatez, nem iam me encher o saco...

Nessa hora, quase como se tivesse atendido às preces dela, Hujo — que, por um milagre, os alcançara sem o seu falatório denunciar sua presença — intrometeu-se na conversa. Dando um abraço de lado na terráquea e, sem querer, exercendo pressão sobre o machucado, disse:

— E aí, Eleninha, pronta pra dar um gancho de direita? — Hujo elevou as sobrancelhas, divertindo-se com a pergunta.

— Ei, idiota — Kai, vindo atrás dele, visivelmente incomodado, chamou-lhe a atenção —, isso é pergunta que se faça?

— Calma, Hayato. — Hujo gesticulou em sinal de paz. — Eu só não esperava ver a nossa humana favorita por aqui hoje — tentou amenizar.

— O cabeça de vento gastou toda a sensibilidade ontem e já voltou ao normal... Tava bom demais pra ser verdade — lamentou-se Kai, indiretamente pedindo desculpas à Elena.

— Você tá cada vez mais chato, hein? Ela nem se ofendeu — defendeu-se Hujo.

— Chato? Claro, eu sou o chato. Muito chato ter um pouco de noção — revirou os olhos. — Sabe, ao contrário de você, eu não faço piadinha fora de hora pra esconder que eu me preocupo com alguém além de mim mesmo.

— É sério que você vai apelar pra isso, meio-metro? Vocês são parte da minha equipe, é claro que eu me preocupo! Ela se feriu, Hayato, e devia estar descansando, não se esforçando mais.

Diante do apontamento de Hujo, Evan e Luuk, indiscretos, parabenizaram um ao outro com um aceno de cabeça. Estarem certos proporcionou-lhes uma satisfação sem igual.

— Você ia dizendo o que mesmo? — Luuk voltou-se à Elena, sorrindo como quem comemorava uma vitória.

— Esqueçam — disparou Elena, encerrando o assunto antes que viesse a enxurrada de comentários sarcásticos. — E tenham mais fé em mim. Um pouco de apoio faz bem.

Tenha mais fé nos conselhos de quem já levou um tiro e entende a sua dor, Evan quis refutar. Em vez disso, guardou o pensamento para si e bagunçou os cabelos dela, piorando a aparência do rabo-de-cavalo frouxo que ela havia improvisado com uma mão só. Sequer se perturbara pela "maldade" do ato, visto que Luuk arrumara a bagunça em menos de cinco minutos. Apenas ficara com um sinal de interrogação pairando em sua cabeça. Havia alguma coisa que seu amigo rawine fizesse mal?

Embora não soubesse, a resposta era "sim". Sim, havia e era algo em que Evan era bom. Muito bom.

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Olár, terráqueos 🖖 Demorou, mas saiu e vem continuação. Interajam, meus amigles!
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(1167 palavras)

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