59 - Ê, Faraó!

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Pimenta nos olhos dos outros sempre era refresco, bem como zombar de soldados capinando lote ou pintando meio-fio quando ela ainda era civil. Estando do outro lado da moeda, Elena não mais achava graça nessas piadas. O mundo era mesmo uma bola.

Fora enviada para auxiliar na revitalização da residência do conselheiro Hayato, dentro da cidadela, sob a proteção da Redoma e dos infinitos muros que separavam a nobreza dos mortais que, pasmem-se, morriam. Aos montes. Zoya lhe assegurara que aquela ocupação era para sua proteção, mas a justificativa não conformara Elena.

Reformar a moradia de um nobre enquanto sua mente navegava em outros mares — perdida na imensidão azul do oceano do olhar de Evan — era uma distração fadada ao fracasso, não uma proteção. Sem contar com o quão absurdo era o conjunto da obra.

Engraçado, uma média de quase mil pessoas morrendo por dia e o tio do Kai tá preocupado com a tinta da casa desbotando.

Pintar paredes coordenando máquinas era algo brando em relação ao clássico serviço manual. Ainda assim, não deixava de ser cansativo. E estava prestes a ficar mais cansativo.

Enquanto programava as broxas mecânicas, distraiu-se por um momento e, neste breve intervalo, vislumbrou um homem idêntico ao jardineiro imaginário acenando para um dos guardas postados à entrada do casarão. De um ímpeto, como executava quase todas as suas ações, descuidou-se das obrigações e caminhou ao encontro dele.

À medida que se aproximava, menos certeza tinha de que se tratava do mesmo senhor cujo caminho se cruzara com o seu mais de uma vez. Os longos dreadlocks repousando sobre seus ombros, como a trança de Rapunzel, e os olhos de céu límpido eram os mesmos. A beca, entretanto, não corroborava a narrativa do humilde jardineiro que desconhecia o conceito de leis trabalhistas.

Ele vestia uma túnica branca, cheia de bordados e ornamentos dourados, e gritava higiene — nada de suor ou terra impregnada no uniforme. Para completar, carregava uma espada embainhada. Até onde Elena sabia, não se cortava arbustos ou árvores com espadas.

Transitando entre incerteza, receio e curiosidade, Elena decidiu cumprimentá-lo. Para sua surpresa, o homem acolheu-a com a mesma simpatia e placidez de antes. Ao invés de acalmá-la, isso a alvoroçou. Ela logo disparou:

— Quem é você? — A voz de Elena transpareceu sua desconfiança. — Quer dizer, de verdade. A conversa de jardineiro da meia-noite não cola. Não com essa roupa que com certeza você não ganhou no bingo da igreja.

Um riso jovial pegou-a de surpresa. À luz matinal, Argi aparentava ser éons mais jovem. Se duvidar, tem menos rugas que eu. O não-jardineiro fora de avô conselheiro a tio descolado em questão de segundos.

— Quem eu sou? — Argi pareceu refletir. — Essa é uma pergunta capciosa... Sou um sacerdote, por assim dizer. Também sou outras coisas, mas isso você já sabe. Nos conhecemos durante uma das minhas atividades extraoficiais.

Elena franziu o cenho e estreitou os olhos. O sacerdote/jardineiro/outras coisas/multifuncional não fora convincente, no entanto, por algum motivo, sua intuição advogou a favor dele. Ok, Pereirão extraterrestre, te dou um voto de confiança.

— Então, onde você trabalha por aqui? — perguntou com a intenção de ser convidada para um passeio, pondo sua tarefa em segundo plano na velocidade da luz.

— Logo ali — informou, sem maiores detalhes. — Gostaria de visitar?

Sim, por favor, qualquer coisa pra me tirar daqui!

— Hum... — Elena fingiu considerar. — Sim, por que não?

Argi anuiu, indicando o caminho. Desviaram-se do passeio principal, enveredando por uma estrada de pedras brancas ovaladas com grama crescendo ao redor delas. Andavam lado a lado.

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