38 - A Noite

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⚠️ Conteúdo sensível: traumas físicos/psicológicos, relacionamento abusivo, abuso de álcool, o tal do Pelado⚠️

A noite/1

"Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta."

Eduardo Galeano, em "O livro dos abraços" 

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Ajeitava a roupa diante do espelho de novo, ainda insatisfeito com a própria aparência. Tendo perdido a conta de quantas vezes puxara sua roupa aqui e ali para deixá-la mais apresentável, desistiu de atingir a perfeição. A camisa de mangas longas, abotoada até o colarinho, tinha a mesma tonalidade de seus olhos e estava para dentro da calça de alfaiataria na cor grafite. Desta vez, um cinto e sapatos sociais pretos compunham o figurino.

Estranhara o ato de ficar frente a frente com aquele reflexo indefinido, que não era o seu Eu do passado nem o Eu do presente. Embora a qualidade dos produtos batasunianos fosse surpreendente, ensebar o cabelo com mousse de nada adiantara. Fios rebeldes saíam do lugar independentemente do quanto os puxasse com o pente. Tamanha preparação era como experimentar uma roupa ou sapato velho depois de crescer: poderia até entrar, mas não serviria tanto quanto antes.

— Quanta arrumação! Vai pra onde desse jeito? — Luuk questionou, intrigado, acomodando-se ao lado dele para trançar o cabelo.

Enquanto ele lutava contra seus instintos para enfiar-se numa peça de roupa, postergando o ato de se vestir o máximo possível, Evan cobrira a maior parte do corpo sem proferir uma reclamação sequer.

— Pra um lugar especial. Não peça maiores detalhes. Talvez eu vá quebrar algumas regras e fazer coisas que não se deve contar a um treinador — brincou.

— Meu orgulho! — apertou-o em um meio abraço.

O desconforto subiu-lhe à cabeça na forma do rubor nas maçãs do rosto. Alarmara-o ser abraçado por um homem pelado assim tão de repente. Além do mais, havia apenas uma pessoa ruiva e alta com a qual ser abraçado desse jeito não seria incômodo. Luuk não era essa pessoa.

— E você? Tá indo pra onde tão vestido assim? — ironizou Evan, na intenção de fazê-lo se dar conta daquela pouca vergonha.

— Droga! Já tava me esquecendo — disse o rawine, suspirando de chateação.

Luuk ausentou-se por alguns instantes, vasculhou uma gaveta do closet e retornou vestindo um short de corrida que pouco alterava o resultado final. Ele tá se superando. Pronto pra ir à estreia de "O Diabo veste Nada".

— Obrigada, amigão! — agradeceu com um sorriso cúmplice genuíno.

A inocência expressada por Luuk frente aos seus comportamentos inadequados levava Evan a concluir que era impossível enraivecer-se pela sua falta de noção.

— Vou só dar uma corrida pelo CT. Preciso respirar um pouco. Não aguento mais ficar tanto tempo preso entre quatro paredes. Uma hora dentro duma sala de reunião, ouvindo ordem da General Z, tentando não cochilar, enlouquece a pessoa — seu desabafo hiperbólico renovou as energias de Evan, pondo um sorriso no rosto dele.

Dando-lhe batidinhas amigáveis nas costas, o colega de quarto se afastou e parou à porta para desejar boa sorte na empreitada contraventora.

— Se for pego, lembre disto: você não me conhece — Luuk saiu para o corredor, rindo feito criança levada prestes a aprontar.

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