De mendigo a traficante

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Quando me despedi de dona Fátima aquele dia eu realmente senti que havia aprendido algo importante.

Talvez tenha sido por que ela tivesse feito a coisa toda parecer como um daqueles filmes clichês da sessão da tarde. Ou talvez por que eu fosse só um adolescente impressionável e ela uma mulher rica que transpirava poder.

Seja como for, aceitei tão bem os cem reais quanto os costumeiros dois beijinhos nas bochechas.


- Então até quinta, Gabriel. – ela disse quando a empregada veio para me acompanhar até a saída.


Seguimos para a porta de serviço e de lá para o hall, foi quando o elevador social parou naquele mesmo andar e duas garotas desceram.

Uma delas tinha os olhos verdes, cabelos loiros puxados para o castanho e era um pouco mais baixa que eu. Tinha a feição carregada, como se estivesse irritada ou com raiva. Ela tomou a frente e começou a caminhar em nossa direção.

A outra garota a seguia. Tinha olhos pretos e cabelos lisos, era mais alta e me olhou com um sorriso estranho no rosto.

Estavam de uniforme escolar, mas usavam brincos, pulseiras, anéis e maquiagem. A julgar pelas aparências não deviam ser mais velhas do que eu, talvez até mesmo mais novas.

Uma terceira figura saiu do elevador. Era um homem de meia idade que pela maneira como estava uniformizado imaginei que fosse um motorista. Carregava duas mochilas que com certeza só podiam pertencer as garotas.

A empregada já havia chamado o elevador de serviço e estávamos aguardando quando o grupo se aproximou.


- Boa tarde, senhorita Rebeca. – a empregada que estava comigo falou, se dirigindo a garota loira que não se deu ao trabalho de responder.


As garotas e o homem entraram no apartamento e antes da porta se fechar por completo ainda tive tempo de ouvir:


- Quem era o mendigo junto da Maria? – a garota loira falou ao passo que a outra apenas riu.

- Era o massagista da senhora sua mãe. – reconheci a voz da empregada que costumava encontrar arrumando a sala de massagem.


"Mendigo?" – olhei para mim mesmo e para as roupas que estava vestindo.


- Quer um conselho? – Maria falou depois que entramos no elevador e a porta se fechou. Ela percebeu que eu havia ouvido o que a garota disse. – Use um uniforme quando vier pra cá... – fez uma pausa, insegura do que diria a seguir como que com medo de mais alguém ouvir. – E fique longe da garota, se conseguir.


Não respondi. Apenas acenei que sim com a cabeça enquanto pensava: "Foram dois conselhos... Espero que ela não cobre por eles.". Também tratei de decorar o nome da empregada.

Não posso dizer que não me incomodei com o que a garota disse, mas também não fiquei tão chateado. Isso por que o que mais me surpreendeu foi pensar que dona Fátima tinha uma filha.

A ideia não havia sequer passado pela minha cabeça e provavelmente eu nunca perguntaria nada a respeito.

Acreditava que parte do meu papel era não fazer perguntas.

Mesmo assim, já na rua e enquanto colocava meus pés pra funcionar rumo a estação de trem, considerei que talvez fosse mesmo uma boa ideia providenciar um uniforme. Pelo visto eu trabalharia lá por mais tempo do que havia imaginado e seria bom evitar constrangimentos.

Lembrei do que a professora Cida havia falado sobre como usar branco daria uma aparência mais profissional.

Como até então eu não tinha nenhuma roupa branca acabei deixando pra lá, mas concluí que talvez fosse uma boa hora pra comprar.

Tudo isso e muitas outras coisas passaram pela minha cabeça no caminho de volta pra casa enquanto, de vez em quando, colocava a mão sobre o bolso onde estava minha carteira. Esse passou a ser um habito meu depois de receber um pagamento.

Até pouco tempo atrás só carregava aquilo pra guardar os documentos e alguns trocados que às vezes recebia dos meus pais para comprar lanche no colégio. Então tocar o bolso e sentir a carteira sabendo o quanto havia ali e que eu mesmo havia conseguido aquele dinheiro me deixava alegre.


- Ooooi, Gael. – Bianca tinha esse jeito de me cumprimentar, prolongando o "oi" e sempre sorrindo. Foi a primeira pessoa que vi quando cheguei. Estava sentada no sofá, sem tênis e com as pernas esticadas.

- Oooi, Bibi! – olhei ao redor enquanto entrava. – Ueh, vocês ainda estão fazendo trabalho?

- Não. – Julia respondeu lá da cozinha. – A Bi vai dormir aqui.

- Ah... – respondi e continuei olhando ao redor com cara de desconfiado.

- O que foi? – Bianca perguntou.

- Estou apenas checando... E também surpreso. Vocês não destruíram a casa.

- Ha ha... Muito engraçado, seu besta. – minha irmã apareceu com um pote de pipoca e sentou no outro sofá ao lado da amiga.

- Você tá comendo esse negócio depois não vai jantar! – dei uma bronca, parte do meu papel como irmão mais velho.

- Larga mão de ser chato.

- Bi, por que você não vem morar aqui ein? Podemos mandar a Julia lá pra sua casa e te oficializamos como minha irmã. – falei enquanto me aproximava e roubava um pouco de pipoca.

- Saí daqui! – Julia me empurrou com o pé. – Você fica comendo esse negócio depois não vai jantar!


Bianca riu e essa foi minha deixa para ir pra cozinha pegar um copo de suco.

Acabei pegando a jarra, três copos e voltando pra sala.

Tentei sentar no mesmo sofá que minha irmã, mas ela já estava esparramada e nem sequer se deu ao trabalho de se mexer, apenas me expulsou mexendo a mão como quem afasta um cão de rua.

Olhei para Bianca e ela ergueu as pernas para o alto.

Sentei e ela colocou as pernas por cima das minhas.


- E aí, como foi o trabalho? – Bibi perguntou enquanto se acomodava e pegava mais pipoca.


Lembrei do acordo de confidencialidade no meu bolso e fiquei em silêncio por um breve momento pensando no que eu realmente poderia contar.


- Tenho cem reais na carteira.


Isso foi suficiente pra chamar até mesmo a atenção da minha irmã. Ela parou com a mão cheia de pipoca a meio caminho da boca aberta e me encarou. A expressão em seu rosto foi de surpresa à desconfiança em segundos e então soltou a pérola:


- Você tá vendendo droga?


Por trás do toqueOnde histórias criam vida. Descubra agora