Eu não sabia se a ideia da Érika era fantástica ou terrível.
Seria realmente uma oportunidade perfeita para realizar o desejo da Bianca de me ver tocando com a banda antes de ir para o Japão. Mas ao mesmo tempo me perguntava a que tipo de vergonha eu poderia acabar sendo submetido.
Acabei chegando a conclusão de que não fazia sentido me preocupar com aquilo.
Se continuássemos com a banda e realmente chegássemos a tocar em algum lugar, eventualmente eu teria que passar por essa prova de fogo.
E era com esse pensamento em mente que eu olhava pra Érika enquanto voltávamos juntos de metro.
- Que foi? – ela perguntou estreitando os olhos com cara de desconfiada.
- Que...? Nada.
- Tá me olhando com cara de pamonha, Gabriel.
- Tava só pensando.
- No que?
- Você acha que a banda vai dar certo?
- Primeiro dia de ensaio e você já quer desistir? – disse fingindo estar incrédula e com os olhos arregalados – Foi tão difícil assim?
- Não, foi bem legal. – respondi sinceramente. – Mas sei lá. Como é que isso funciona afinal? A gente ensaia até ficar bom e então...?
- Também não faço a menor ideia. Não tinha pensado nisso ainda...
- Que?! – fiquei surpreso. – Eu achei que você soubesse!
- E eu lá tenho que saber de tudo, Gabriel? – seu tom de voz aumentou.
- Você que inventou essa história toda, Érika! – respondi aumentando também.
- Inventei mesmo! – e aumentou mais ainda. – E do que você tá falando sobre dar certo? Você ainda nem tem uma guitarra!
- Mulher! Eu nem sabia que ia precisar de uma guitarra! – já estávamos quase gritando, as pessoas ao redor começaram a olhar.
- Que tipo de guitarrista entra numa banda sem ter uma guitarra, Gabriel?!
- O tipo de guitarrista que é arrastado pela amiga louca, Érika!
- Agora a culpa é minha?! – ela riu. – Tudo bem então! Eu vou te emprestar uma guitarra.
- Mesmo? – meu tom de voz até baixou se transformando em surpresa.
Havíamos conversado antes de sair.
Meu violão não era nem mesmo elétrico e por causa disso seu som era suprimido pelos outros instrumentos.
- Você vai precisar de uma guitarra ou pelo menos de um violão elétrico. – Jean falou.
- Eu não sei tocar guitarra.
- Violão, guitarra, baixo... É tudo a mesma coisa. – Érika disse. – Só muda a quantidade e a espessura das cordas.
- Mas não é mesmo! – Jean replicou, indignado.
- É tudo igual! – Érika insistiu.
E os dois acabaram entrando numa discussão a parte e me deixaram com meus próprios pensamentos.
Eu não sabia se seria viável comprar uma guitarra naquele momento, com tantos gastos que ainda estavam por vir antes da Bianca ir embora e com os atendimentos da dona Fátima em pausa.
Eu teria de ser econômico, então não pensei duas vezes quando Érika disse que iria me emprestar o instrumento. Eu apenas aceitei.
A acompanhei até a estação Tatuapé e, para que eu não tivesse que pagar uma segunda passagem, fiquei aguardando junto das catracas enquanto ela ia em casa buscar.
Érika também levou meu violão, assim eu não precisaria carregar dois instrumentos por aí e pelo tempo que demorou pra ir e voltar aposto que nem sequer se esforçou em acelerar o passo.
Foram mais de trinta minutos de espera. E lá estava ela, vindo abraçada ao instrumento que por si só já chamava muita atenção. Bastou uma olhada para me arrepender quase que de imediato.
- Tá aqui. – falou sorrindo enquanto me estendia uma guitarra rosa cheia de adesivos.
- Meu deus, Érika... – deixei escapar enquanto segurava o instrumento pelo braço.
- Que foi? – Érika já exibia sua cara de quem estava se divertindo muito com a situação. – Não vai dizer que não gostou. Eu até colei alguns adesivos pra disfarçar e não ferir sua frágil masculinidade.
- Foi por isso que você demorou tanto?! – perguntei enquanto olhava para o corpo da guitarra repleto de adesivos que iam desde unicórnios a corações, todos metalizados ou holográficos. – Com toda certeza minha frágil masculinidade estará totalmente a salvo com seu esforço.
- Não é? – replicou ironicamente. – Cuida direitinho dela. Ganhei quando era criança, mas rosa não combina comigo, então quase não toquei.
- Céus...
- Até sábado, Gabriel. – acenou rindo e foi embora.
E se hoje em dia vocês acham a sociedade homofóbica, naquela época então...
Os olhares que se voltaram na minha direção durante todo o restante do trajeto até minha casa vieram acompanhados de risos de chacota, desprezo e até mesmo nojo.
Isso fora alguns bêbados me chamando de "viadinho" e "bichinha" quando passei em frente a um bar.
Tudo isso sendo uma pessoa heterossexual carregando um instrumento que, segundo a sociedade, não condizia ao meu gênero.
E é claro que eu me senti envergonhado.
Como não me sentiria?
Mesmo que de brincadeira, Érika acertou e não vou negar, minha masculinidade era bem mais frágil do que eu imaginava.
Isso sem contar o olhar do meu pai quando entrei em casa.
Ele pareceu ao mesmo tempo surpreso e preocupado fazendo com que me sentisse tão mais envergonhado que cheguei a mentir dizendo que uma amiga havia pedido para eu guardar pra ela.
Só consegui pensar que mais uma vez Érika havia conseguido me fazer passar vergonha. Mas hoje em dia percebo que isso nunca foi algo com o que eu devia ter me envergonhado e que na verdade as pessoas ao redor é que deveriam se envergonhar de julgar quem quer que seja por coisas assim.
Alias, perceber isso foi bem mais rápido do que eu esperava.
Mas enfim...
Julia e Bianca adoraram a guitarra.
Elas até mesmo quiseram aprender a tocar e gastei algum tempo ensinando ás duas alguns acordes, mas acabaram perdendo o interesse bem rápido já que ainda me faltava o cabo e um amplificador para que pudéssemos realmente ouvir o som.
- Quando é que vamos te ver tocar com a banda? – Julia perguntou enquanto Bianca passava a alça por cima do ombro e deslizava o dedo pelas cordas.
- Acho que talvez isso aconteça logo. Mas não posso garantir. – respondi, sem querer revelar muitas informações sobre o que Érika havia dito e também sobre o possível local para a festa. Não queria gerar falsas esperanças.
- Para de enrolar, Gabriel. – Julia falou. – Por que você não leva a gente num ensaio?
E pela cara que Bianca fez deu pra ver que havia gostado da ideia.
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Por trás do toque
Não FicçãoGabriel é um garoto tímido de dezesseis anos que empurra a vida com a barriga evitando pensar sobre o futuro. Tudo estaria ótimo se não fosse por seus pais decidindo que já é hora dele começar a trabalhar e assim, influenciado por sua melhor amiga N...