No fundo do poço

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A carta veio na segunda.

Uma pra mim, uma pra Julia e junto algumas palavras escritas por dona Hideko para minha mãe.

A felicidade ao pegar o envelope em minhas mãos foi o completo oposto do que senti quando terminei de ler. Tanto que mesmo hoje é difícil de descrever a coisa toda.

Eu não sabia o que esperar, mas posso dizer que definitivamente não era nada daquilo.

Sei lá... Talvez eu só quisesse um final feliz, mesmo sabendo o quão longe isso estava da realidade.

Eu queria contar pra Bianca sobre a ideia de fazer aulas de japonês e me mudar pra lá. Eu cheguei a encontrar um curso do método kumon e também tinha descoberto que se me saísse bem no exame de proficiência poderia até me candidatar a bolsas de estudo.

Tudo o que eu precisava fazer era continuar trabalhando, assim poderia pagar o curso e no mais era só me esforçar para estudar.

Mas eu não tinha um número de telefone para o qual ligar e antes de receber a carta também não tinha um endereço.

...E agora a coisa toda havia perdido o sentido.

Li e reli cada palavra pensando em diferentes possibilidades, mas sempre caindo na mesma conclusão.

Bianca estava se esforçando pra seguir em frente.

O quão egoísta eu precisava ser para prendê-la nas minhas fantasias?

O que aconteceria se eu escrevesse de volta dizendo que a amava e que não queria que terminássemos daquele jeito? Que eu iria estudar japonês e que em dois anos talvez conseguisse uma bolsa?

Cheguei a por as palavras no papel, mas bastou ler uma vez para sentir o gosto amargo e o peso de "dois anos" e "talvez".

Mais uma vez a frustração tomou conta de mim e a raiva voltou a crescer.

Com a testa apoiada sobre o papel contra a superfície da escrivaninha, senti meus olhos arderam sem lágrimas e meu peito doer enquanto engolia a vontade de gritar.

Levantei e sai de casa, batendo a porta atrás de mim sem dar satisfação de para onde ia. Acabei sentado no banco da praça próxima de onde eu morava, com o rosto entre as mãos e pensando em tanta coisa que não seria capaz de listar aqui.

Mas o principal a se dizer é que tudo se tornou ainda mais vazio e sem sentido.

Ir pra escola, trabalhar, acordar...

Até mesmo a ideia de ensaiar, naquele momento, me pareceu algo exaustivo e sem propósito.

E por mais sincero que eu pretenda ser nesses relatos, não vou expor todos os pensamentos depressivos que passaram pela minha cabeça na ocasião. Basta apenas dizer que a sensação era a de que eu vinha me esforçando para subir, sair do poço, escalando as paredes com a ponta dos meus dedos. E que ainda assim, apesar de todos os meus esforços, fui jogado novamente lá embaixo.

Só que agora, ao olhar pra cima, havia uma pedra tapando a saída e ao me redor apenas escuridão.

Voltei pra casa depois de uma hora, me joguei na cama, dormi e acordei no meio da madrugada.

Julia estava chorando.


- Que foi, Ju? –perguntei baixinho, ainda sonolento.

- Nada.

- Ninguém chora por nada, Ju. - sentei na cama e esfreguei os olhos sentindo minha cabeça doer. – Vai, fala logo.

- Eu já falei que não é nada. Vai dormir.

- Não consigo mais dormir. – disse quando me levantei. Sentei na cama dela, bem ao seu lado. – Bem que eu queria. Preciso comer alguma coisa... Ou tomar um toddy.

- Então vai!

- Já já...


Parado ali, depois de esperar por tempo o suficiente em silêncio, Julia finalmente começou a falar sobre como tudo estava péssimo.

Nossa mãe, nosso pai, saudades da Bianca, a escola...

Eu ouvi tudo, entendendo perfeitamente cada ponto e cada vírgula do que ela dizia.


- As coisas vão melhorar, Ju. Tenho certeza.

- Como?

- Hmm...


"Pois é, Gabriel. Como?!" – pensei comigo mesmo.

E por mais que eu não soubesse o que responder para mim, estava bem claro o que eu tinha que fazer ali.


- Eu sempre cuidei de você, não é? Então eu vou dar um jeito.

- O que você vai fazer?

- Julia... Não me faz pergunta difícil agora não. – e coloquei a mão na cabeça. Eu realmente precisava comer alguma coisa. – Pra começar, que tal a gente ir ao cinema? E comer alguma coisa no shopping também.

- E isso resolve o que?

- Bosta nenhuma. Mas se é pra ficar se sentindo mal, melhor que seja com alguma coisa gostosa na barriga.


Julia não tinha como argumentar contra isso e até aos meus próprios ouvidos minhas palavras pareceram fazer algum sentido.

A cobri e fui tomar meu achocolatado, dizendo que se voltasse ali e ela ainda estivesse chorando, ia ser obrigado a tomar providencias mais drásticas e não respondia pelos meus atos.

Uma ameaça em vão, apenas para distraí-la e quebrar um pouco aquele humor.

Preparei meu lanche da madrugada e comi sozinho na cozinha pensando no que fazer pela Julia.

Lembrei de quando recebi a noticia de que Bianca e dona Hideko iriam para o Japão.

De como pediram para que eu cuidasse das duas. E me peguei repetindo num sussurro minhas próprias palavras pra mim mesmo:


- E quem é que vai cuidar de mim?


Mas pra essa pergunta eu sempre soube a resposta...

Olhei no relógio. Quase quatro horas da manhã.

Me apressei a terminar de comer e fui ao banheiro escovar meus dentes antes de tentar voltar a dormir.

Já era terça feira e talvez eu até pudesse faltar na escola, mas não fazia a menor ideia do que poderia acontecer no trabalho.


Por trás do toqueOnde histórias criam vida. Descubra agora