06

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Kath tinha dormido, já assoprava e pouco mexia, estava na hora.

Cuidadosamente, Elari se lenadou da cama, colocando travesseiros ao lado da irmã para que ela não sentisse a falta do corpo dela ali. Com o máximo de velocidade que conseguia sem fazer barulho ela trocou a camisola pelas calças e blusa, estavam folgadas e grandes, por isso ela tinha pego os suspensórios, colocando o excesso de blusa dentro da calça e prendendo o cabelo em um coque sentia-se pronta para enfrentar quase tudo, a faca que tinha pego antes foi envolta por um retalho de pano e colocada no bolso fundo da calça. Os sapatos eram os seus, os que costumava usar em casa, simples e confortáveis, além de silenciosos. Ela pegou a mochila com o conjunto de roupas e as comidas, só faltava aguaágua.
Com passos leves andou até a porta e abriu uma pequena fresta, conferindo o corredor antes de sair, a porta em frente estava aberta.
Merda, Ed estava a vigiando, ela quase podia ver o brilho azul dos olhos dele, sentado em sua cama com aqueles braços grandes cruzados, a olhando pela porta aberta.
Ela fechou a porta com pressa o que fez um som relativamente alto, suficiente para a fazer encolher e conferir Kath. A menina tinha apenas respirado mais fundo e mudado de posição. Elari esperou, dois minutos e já seguia até a janela para efetuar o plano que acabara de traçar. A janela era arriscado, podia se machucar no salto, mas poderia se apoiar na janela de baixo até a metade da altura. Ela abriu a janela, passou uma perna e depois a outra e andou pelo telhado, estava olhando para baixo, conferindo a posição da janela menor quando escutou aquilo.

- Se cair daí pode quebrar o pescoço.

Ela se assustou e perdeu o equilíbrio, indo para frente, ela viu o chão logo abaixo e pensou em como tinha cometido o maior e último erro de sua vida até sentir a mão dele em seu braço e depois na barriga, a puxando para a segurança. O contato não demorou mais que o necessário. Ela encarou Steve com raiva sob a luz fraca da lua menor.

- O que esta fazendo aqui?

Graças aos deuses que os olhos dele não tinham aquele brilho inatural e que agora o vermelho estava mais escuro, como se fosse um castanho, ou ela poderia muito bem ter ido ao chão e sem tempo para que ele a ajudasse de novo. Ele deu um passo para trás, dando espaço para que ela se afastasse da borda.

- Salvando sua vida. E você? O que faz no telhado da casa uma noite antes de ir para outras terras, ao invés de estar aproveitando o calor de sua irmã?

Sem palavras. Ele se sentou no telhado depois de ver a cara que fazia, completamente derrotada, por enquanto, ainda tinha o resto da noite inteira para fugir e se preciso o faria quando ele fosse ver os resultados dos testes do dia seguinte. Ele deu dois tapinhas no espaço ao seu lado, ela foi até lá e se sentou com as telhas estalando e reclamando sob seus pés e depois quando se sentou.

- Por que quer fugir?

É, aquela pergunta era mesmo o que iniciaria um longo discurso e discussão entre os dois. A mesma pergunta que todos de sua família sabiam a resposta, que ignoravam completamente.

- Você sabe a resposta.

Ele olhou para ela, mas Elari manteve o rosto virado para a frente, mesmo que sentisse o olhar dele sobre ela não iria olhar de volta, não agora.

- Mas gostaria de ouvi-la.

Um suspiro, um breve olhar. Steve era seu amigo quase tanto era de Ed. Pronunciar aquelas palavras mais uma vez seria doloroso, mas preciso. Talvez com isso pudesse finalmente dividir o fardo mais uma vez, talvez visse o quão tola era por sentir aquilo.

- Medo. Eu tenho medo, Steve. Desde aquela noite não aguento mais olhar para minha mãe ou pai ou qualquer pessoa que os olhos brilhem no escuro. Não consigo mais me sentir realmente segura ou... feliz. Sempre estou apavorada, nunca saio de casa ou mesmo do quarto. Os últimos dois anos, desde que você foi para aquela ilha, foram os piores. Quando eu sabia que a qualquer instante perderia outra pessoa importante para mim. E quando Kath fala... fala sobre como ela quer ver a cor daquele fogo... eu...

Ela tinha abaixado a cabeça, os cotovelos nos joelhos e segurando os cabelos como se pudesse aguentar um fardo, mas estava prestes a ficar pesado demais.

- Mas você não o perdeu, nenhum de nós dois. Ainda estamos aqui.

- Mas vocês não são mais os mesmos.

Uma longa pausa fria pairou entre os dois até que Steve falasse novamente.

- Continuamos amando você. Isso não é o suficiente?

Sua voz falhou e dor comprimiu seu coração ao responder.

- Não.

- Não vamos atacar você se é do que tem medo.

- Eu tenho medo de me tornar um monstro.

Ela se arrependeu do que disse. Tinha chamado ele de monstro, de algo pavoroso, daquilo que ela tentava fugir e que se agarrava ainda mais a ela. Hetar...

- Até mesmo monstros têm coração, Elari. Também podemos nos despedaçar.

- Desculpe...

Devia ser tarde demais.

- Não quero que fuja. Os humanos... os vermelhos são cruéis. Por que acha que receberam essa cor?

Aquilo, humanos cruéis, era novo. Os humanos eram os guardiões, não cruéis.

- Por protegerem a aurora.

Era isso que tinham ensinado a ela, era isso que ensinavam a todos.

- Por se cobrirem de sangue e não se importarem com isso.

Um calafrio a percorreu.

- Não pode ser verdade.

Ela olhou para Steve, ele se levantava e olhava para a lua menor, pequena e azul, no céu.

- É a verdade. Quando formos à Capital Negra você descobrirá e entenderá porque as Terras humanas são proibidas, porque eles receberam as terras áridas e quentes e porque são chamados de heróis quando não passam de um bando de assassinos.

- Eu não quero ir para aquele lugar imundo!

Ela quase gritava. Com aquelas palavras e com aquele olhar que recebia soube que o tinha magoado de verdade, ele tinha nascido lá, veio para essa ilha por ter ficado órfão, mas... ele era de lá.

- Desculpe.

- Você pediu desculpas duas vezes hoje. Devo chamar um curandeiro? - ele começou a andar até a borda, parando com uma mísera distância do ar vazio - Magoa, Elari. Posso imaginar o que sente, não entender, mas tento.

Então ele pulou, ela quase correu até ele, mas se lembrou de sua força, lembrou que um salto daqueles não o quebraria como quebraria ela enquanto não fizesse a Conversão. Ela ficou ali por mais um tempo, minutos ou horas, talvez se ficasse mais um pouco veria a aurora chegar, mas ela entrou, olhou para a irmã. Kayh ainda estava deitada, respirando calmamente e assoprando algumas vezes, os cabelos castanhos espalhados pelos travesseiros e as mãos repousando levemente fechadas em frente ao rosto. Elari se deitou ao lado dela e absorveu cada gota de calor que fluia da irmã para ela, Kath sempre fora mais quente que qualquer outro, mesmo Ed era frio antes de se tornar gelado, a irmã era sempre a fornalha que aquecia o coração de Elari, mesmo quando era pequena e chorava ao ponto de quase destruir seus ouvidos. A primeira lembrança que Elari carregava era a de Kath em seu berço sorrindo para ela como se fosse a luz que tornava tudo visível, Elari a amava mais intensamente que amava a mãe, o pai e o irmão. Kath era a razão de ela ter ficado ali depois que Edone completou 18 anos, era a razão de ela ter protelado a fuga até o último dia. Para ficar ali e sentir o calor dela. E era a razão de ela decidir que, depois do que Steve disse, ela preferia se tornar um monstro a nunca mais ver aquele rosto ou sentir aquele calor.

Elari ficou.

Ela ficou e esperou a luz banhar o quarto e despertar a razão de seu mundo, mesmo que se despedaçasse, iria ficar ao lado dela, mesmo que também a perdesse, se perdesse, não podia traí-la, não quando o qie era tinha dado mais esperanças e cor para ela.

Iria se tornar um monstro, iria odiar a si mesma. Mas teria Kath.

Os EternosOnde histórias criam vida. Descubra agora