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A vergonha pela cena de pânico e chamativa e pelo vômito a atingiu apenas no dia seguinte, quando o gosto ruim na boca e a mão latejante eram as únicas coisas que a incomodavam, apesar de já ter lavado a boca e de ter comido e trocado as bandagens.
Ela não gostava quando algum curandeiro vinha olhar seu corte e ficava inspirando e depois prendendo a respiração. Era óbvio como eles desejavam sangue. O pior era que vinham a cada hora.

Não era como se tivesse sido perfurada no estômago para receber tanta atenção e cuidados. Mas quando o corte não parava de sangrar, mesmo que pouco, e tinha realmente que trocar as faixas a cada hora ela começou a se preocupar. Após o almoço Steve entrou no quarto acompanhado por três jovens. Ele perguntou se ela estava bem e com uma positiva ele pediu licença e saiu. Imediatamente Tharna correu de onde estava e pulou na cama em que Elari estava sentada.

- Todo mundo só fala de você e de como roubou a cena!

Rahir também chegou perto e antes que Elari comentasse algo ele disparou a falar.

- Você tinha que ver a cara e o escândalo que a Marest fez! E o Conselho! Eles ficaram loucos olhando pra sua fogueira! O que era aquilo? Era mais preto que o preto! E a parte que você sumiu com...

Os olhos de Tharna se abriram demais e ela terminou a fala dele.

- Com o Senhor Negro! Acredita! Ele realmente foi nesse ano! E assim que você acendeu a fogueira e ela brilhou negra ele te levou de lá! Foi tão wow! E a Marest começou a gritar que aquilo era errado e ela até tentou apagar a fogueira, mas o fogo ficou ainda maior! O mestre das armas...

- Ele sumiu na mesma hora e quem teve que manter a ordem foi uma mulher do Conselho. Ela saiu dando ordens pra todo mundo. E que mulher era aquela!

Tharna bateu no braço de Rahir, ele reclamou e disse que ela realmente era uma grande mulher. Tinha sido icônico como os dois entraram em sintonia e completaram o que o outro ia falar, como se fossem irmãos ou a mesma pessoa.
Elari estava sem palavras e um pouco depressiva. Tinha chamado mais atenção, por isso tinha ficado tão mal. Muitos olhos de monstros sobre ela.

Oldren se aproximou e estendeu uma adaga, a adaga dela que tinha caído quando se cortou. Ela a pegou e pôs no colo.
As portas se abriram e o curandeiro aparecia mais uma vez. Ao menos ela não estava a sós com ele e não teria que ver ele cheirar seu sangue.
O curandeiro era muito velho, um miren certamente com mais de dois milênios de vida, o que era muito raro por causa das guerras que os Negros participaram. Ele tinha cabelos grisalhos que estavam bem penteados para trás, uma barba farta e cinza e olhos pequenos envoltos por rugas. Aquela aparência só era vista em Salyu e gorgan naturalmente.

Ele andou entre os jovens sem se importar em esbarrar em um deles. Estendeu a mão magra e enrugada para Elari que estendeu a mão esquerda enfaixada, ele começou a tirar o tecido ensanguentado.

- Por Thavara! Elari, ainda está assim?

- Ainda não fechou.

Tharna mostrou a própria mão, uma fina linha vermelha a cruzando.

- O meu secou ainda ontem!

O curandeiro falou pela primeira vez no dia, a voz era rouca e gasta.

- Ela usou muita força. O metal não aceitou ela. Por isso feriu tanto. Tome isso.

Ele tirou uma pequena garrafa de um bolso de sua veste mais externa. Um líquido vermelho tão escuro que era quase preto preenchia a metade dela.

- Está com o sangue fraco. Isso vai deixar mais forte.

Elari pegou a garrafa. Oldren se aproximou e sacou a rolha, o cheiro não era bom. O curandeiro começou a limpar sua mão.

- Tudo?

- Tudo.

Ela colocou boca na boca e virou a garrafa tomando como um tônico para febre. O gosto era amargo e como metal em sua língua. Controlar a careta era impossível. O gosto ruim na boca foi substituído. Um minuto depois Elari sentia a pele formiga e coçar, a mão voltou a latejar com ferocidade, o curandeiro ainda a tinha ele apertou seu pulso com força e o sangue acumulou. Ele a soltou antes que dissesse algo e limpou o sangue novamente.

Sua mão estava enfaixada quando a teve solta.
Rahir se inclinou e olhou para a mão dela, depois se virou para o curandeiro velho.

- Quantos anos você tem?

Tharna e Elari escancararam a boca, Rahir estava falando diretamente e igualmente com grisalho. O curandeiro não se importou.

- Dois mil e setenta e nove.

Rahir pôs uma mão no queixo.

- Como é ter essa idade?

O curandeiro o ignorou dessa vez e falou diretamente para Elari.

- Se até o fim da tarde não parar de sangrar, vamos costurar.

Elari engoliu em seco ao imaginar aquele velho com mãos que tremiam passando uma agulha com linha na sua pele. Tremer foi o mínimo.
Ele saiu antes que Rahir fizesse mais perguntas inadequadas. Oldren olhou para ele. Idiota. Elari quase podia escutar.
Tharna se mexeu na cama fazendo barulho com os lençóis.

- Ah! E você não é o único assunto! Também estão comentando sobre Morivan, ela ontem implorou por clemência e disse que não era miren. - ela se inclinou e sussurrou - Parece que a família a obrigou a isso, porque todos eram gorgan pobres e se ela não fizesse iriam vender ela, para os Dourados. O Conselho ainda está decidindo o que fazer com ela, já que esse é um novo caso. Eu acho que vão escravizar ela.

A segunda pior sentença em que se continuava vivo. Tharna rolou pela cama.

- Essa sua cama é bem maior que a minha e o quarto é mais decorado também. - ela apontou para cada objeto - Tem sofá, estante, mega guarda roupa e uma janela grande. O meu é do mesmo tamanho, mas a janela é pequena, a cama é dura e só tem uma cadeira. - ela fez bico - Quer trocar?

Rahir bateu na nuca dela e Tharna soltou um gritinho.

- Não seja idiota, Yulansh! Ela é Hetar. Burra. É claro que receberia um quarto melhor que o seu, além de ter o fogo tão escuro... - ele ajeitou o colarinho - Obviamente eu também tenho um bom quarto.

Tharna olhou para ele com raiva.

- Claro! O senhor nobreza. - ela rolou os olhos quando ele entendeu como um elogio depois de um segundo se empolgou novamente e já pulava no colchão - O que acha que vai acontecer agora que você é melhor que a Marest? Talvez seja você quem o Senhor Negro - ela brincou ao dizer o título engrossando a voz e mexendo os dedos - vai pedir em casamento.

Elari fez uma careta.

- Não iria querer isso. E não vai acontecer. - ela cruzou os braços e imitou a voz de Tharna - Os nobres não se misturam.

Tharna disparou em uma gargalhada, Rahir se ofendeu se afastou delas xingando, Oldren abriu um pequeno sorriso e Elari aproveitou o momento e deixou uma risada sair de sua garganta. Fazia um bom tempo que fazia brincadeiras e piadas com alguém que não Kath. Era bem humorada, mas raramente tinha chances de mostrar esse lado. Fazer aquilo com eles era novo para ela, novo de um jeito bom.

Depois de mais piadas sobre nobres e de Rahir ameaçar arrancar suas cabeças, elas pararam e Elari se levantou para caminhar. Juntos, foram até a janela e exploraram os livros na estante, brincaram com as decorações e quadros e se chamaram de crianças. Quando o por do sol estava próximo eles se foram, deixando Elari sozinha mais uma vez até que o curandeiro voltou e olhou sua mão. Estava bem melhor, mas ainda sangrava um pouco. Ela tremeu muito quando ele levou a mão ao bolso da veste, não queria ser costurada, mas ele tirou outra garrafa de lá. Disse que se tomasse mais três iria sarar. E com muito prazer ela ficou com o gosto ruim na boca e tomou a sopa de galinha que tinha para jantar.

Esperava que pudesse rir como naquele dia por mais vezes.

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