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A primeira coisa que ela pensou foi que seu mundo mudava ali, ela se tornaria outra pessoa, uma pessoa de alguém e não mais a garotinha que se amedrontava com os trovões, que não podia sentir o frio sem chorar.
Eles foram para um lugar que ela não conhecia, isolado do Palácio. Ela quase podia dizer estar cansada não fosse pela ansiedade, a coroa em sua cabeça tinha se tornado mais e mais pesada conforme as palavras eram proferidas pela espiritualista, naquele instante era colossal o peso sobre sua cabeça e como se soubesse de tudo, assim que adentraram o cômodo com cheiro de pinheiros e chuva Kah Sung tirou a coroa de sua cabeça a repousando sobre uma pequena mesa próxima. O lugar parecia tranquilo e seguro, mas o coração de Elari estava agitado e a mente formigava de pensamentos. Ela havia formado um laço, com ele!

Não tinha a menor ideia de quem seria ao amanhecer, seria o monstro que sempre temeu ou outra coisa, ela não sabia. O medo estava a inundando após um tempo que parecia ter sido sempre, era como se tivesse esquecido como era aquele aperto, a ansiedade, não saber como se encaixar no mundo.

Ele tocou um de seus ombros, por um momento o toque foi gélido e então muito quente, era ela quem estava fria, ela era o monstro.

- Não precisa temer.

O desespero ainda a tomava e o pânico ameaçava superficializar.

- O que vai acontecer?

Não importava se estava implícito, ela precisava saber com exatidão, com clareza. Ele a olhou com profundidade, ela estava vulnerável e ele podia ver aquilo.

- Essa será a noite da sua conversão. Eu vou a tornar completamente igual a mim.

- Como?

A palavra saiu em um sussurro. Ele afastou o cabelo dela do ombro e acariciou o pescoço dela.

- Isso é a única coisa que resta de nossas origens, o que ainda nos define como negros, precisamos passar por esse momento, nenhuma outra espécie nesse mundo precisa disso, nenhuma outra tem a vida tão dividida entre dois momentos, antes e depois.

A pergunta surgia em sua mente e antes que a proferisse ele respondeu.

- Antes e depois da morte.

Sim, ela realmente devia ter medo, e se ela se fosse, mas não voltasse. Aquele era apenas mais um se de tudo aquilo, mas a realidade era que se não passassem por esse momento morreriam de qualquer maneira.

- É por isso que nosso ansoo brilha negro, somos aqueles destinados a morrer, já fomos os mais fracos por isso, por não importar se pareciamos com os vermelhos, ou se éramos mais fortes que eles, sempre morriamos antes de realmente viver. Então alguém entendeu o que deveria ser feito.

Não era como ensinavam para as crianças, não era o que estava nos livros, aquilo tudo era novo, estranho, não fosse Kah Sung quem a contava, ela jamais poderia acreditar.

- Estávamos à beira da extinção, haviam tão poucos que nem nos consideravam mais um reino, as terras tinham sido tomadas antes mesmo de sermos a metade do que éramos, estávamos fracos e os azuis se aproveitaram para expandir o território deles. Até que nasceu um diferente, uma criança que havia morrido antes de ao menos nascer, mas tornou à vida, ela já havia passado pela conversão, tinha presas, poderes além do normal, ela demorou décadas para ter o tamanho de uma criança e quando tinha o tamanho de uma adulta ela mordeu aquele que reconheceu como seu destino.

Ele desabotoou o primeiro botão.

- Assim, começamos a ascender, puros, fortes, velozes, capazes de enxergar muito mais que os outros, então a ruína nos caiu novamente. Hoje não temos mais sangue puro, habilidades de outras cores se mesclaram às nossas e apesar disso normalmente causar a decadência de uma cor, nós nos mantivemos fortes.

O segundo também se foi.

- Então, Elari, como farei sua conversão será da mesma forma que a primeira de nós fez com seu destino.

O terceiro também, abrindo a gola, ele afastou o tecido do pescoço e se aproximou. Ela fechou os olhos sem saber como seria, se iria doer. Tudo que ele fez foi depositar um beijo ali provocando uma calafrios em seu corpo.

- Não será agradável, cada momento será doloroso, você estará morrendo, porém renascendo também, inteiramente como eu, como quem você realmente é.

Ela lembrou dos gritos, da mudança. Eles tomaram dois frascos, ela não teria nenhum?

- Será apenas isso?

Ele abriu um sorriso.

- Sim.

- E... depois?

A sede mortal. Ele acariciou os cabelos dela.

- Eu serei seu sangue e você o meu, mas nesta noite apenas você irá tomar de mim.

Ela olhou ao redor mais uma vez, o cômodo, percebeu, não era de madeira, mas de rocha branca, a mesma do Palácio em Negra, também possuía entalhos delicados, mãos habilidosas os haviam feito, então algo mais veio à sua mente.

- Como eu estarei... depois?

- Espero que eu seja o suficiente para sua sede ou iremos descobrir o quanto essas paredes aguentam.

Ela riu e ele segurou a mão dela.

- Quando disser que está pronta.

Ela provavelmente nunca estaria pronta pra aquilo, nunca esteve e muito menos quis, mas ali estava ela e ficaria pronta pra Kah Sung, pra viver com ele, ser dele e o ter. Nada mais importaria, se o mundo precisasse ser partido ao meio para que ela ficasse com ele, ela seria a primeira a quebrar uma rocha.

- Estou pronta para você.

Ele sorriu e ela aproveitou para absorver a visão que tinha dele, por fim ambos acenaram. Elari fechou os olhos enquanto sentia ele se aproximar do pescoço dela.
Sentiu o coração acelerar, apertou as mãos com força, então sentiu a dor, ele havia a mordido, ela tentou escapar instintivamente, mas ele a segurou. Doía como os trovões, doía como ossos se partindo. Ela o arranhou, mas não adiantou, ela sentia o sangue escorrer pelo corpo, então ele se afastou, a boca vermelha, o sangue dela escorrendo pelo queixo dele. Ainda doía, mas então ela deixava de sentir, sentia a cabeça esfriar, a visão turvar e as pernas ficarem fracas, ela caiu, mas antes que atingisse o chão ele a pegou, agora seu corpo pulsava, mas estava fraca, não conseguia se mover, ele sussurrou algo, a soltou, devia ser sobre a cama, ou mesmo no chão, ela não sabia. Ficou escuro, devia ter fechado os olhos, estava cansada, sentia que havia quase adormecido quando a dor se intensificou, ela gritou, agarrou o que conseguiu alcançar, se contorceu e gritou mais, se a mordida havia doido aquilo já era a morte, cada centímetro em cada canto de seu corpo doía como se a mergulhassem em ferro derretido, como se Kah Sung a mordesse em cada parte milésima dela, então passou. Era como se nada houvesse ocorrido, mas quando prestou mais atenção, sua visão estava diferente, quando moveu o corpo também o sentiu diferente, mais leve porém estranho, ao se sentar viu tudo diferente de antes, tudo mais nítido, os entalhes eram mais detalhados, as cores mais vivas e a rocha já não era branca, mas repleta de cores diversas. Tudo ali era mais belo que poderia ter imaginado e quando olhou para Kah Sung ela sentia que o entendia por completo, que sabia tudo dele mesmo os sentimentos mais profundos que não havia compartilhado antes, então ela sentiu o cheiro do próprio sangue nele. Sua garganta secou e ela sentiu a sede, era a pior que já havia sentido, se ficasse três dias sem água no deserto não seria aquilo, ela procurou por água e encontrou, virou a jarra por completo, mas não adiantou, então quando se virou novamente para Kah Sung ela entendeu. Não foi gentil como ele havia sido com ela, não pediu ou aguardou por permissão, ela o puxou contra si e o mordeu onde primeiro alcançou.

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