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O frio colidiu contra a pele pouco protegida de Elari.

Ela não havia se preparado para sair do Palácio naquele dia, as rochas brancas mantinham quase todo o frio longe dos cômodos monumentais. Assim que ela colocou os pés do lado de fora sentiu um arrependimento mesclado a alívio, o sufocamento passou contudo o tempo cinzento e branco a fez tremer e sentir exatamente outro tipo de sufocamento, um causado por más lembranças.

Ela teve tempo apenas para dar alguns passos antes de ele surgir à sua frente. O manto negro ainda flutuava atrás dele quando ele segurou seus ombros cobertos apenas pelo tecido fino do vestido, ela sentiu o alívio causado por aquele calor dele, se deixou perder no céu cinzento que era o olhar dele, sentiu o quase incontrolável desejo de o trazer mais para si. O que um beijo não tinha feito com ela?

- Você está bem?

Ela quase disse sim, quase esqueceu o que estava por vir em quatro dias e por um instante ela achou aquilo insignificante, afinal, apenas metade de um dia antes havia desejado poder fazer logo a conversão, mas... aquilo ainda a apavorava sem o ardor do desejo por Kah Sung, aquilo ainda parecia que iria a transformar em poeira, em um corpo sem chamas, e o pior, sem calor.

- Não...

Ele a olhou por um instante e a envolveu com os braços a levando para bem próximo dele, ela se sentiu aquecida e qualquer raiva que pudesse sentir por ele ter alguma parte em toda aquela trama para a fazer ficar mais e mais frente a frente com seus medos, se esvaiu e ela também o abraçou.
Ele a apertou mais forte a envolvendo como um casulo e Elari soube que ele os estava levando para algum lugar e mesmo quando sentiu que haviam chegado não se afastou. As mãos mantinham-se fortes ao redor dele, ela apertava a camisa dele assim como apertou tantas vezes as próprias roupas, ela o inspirou e deixou que ele a confortasse apenas por existir e aquilo também doía nela, aquele conforto e a vontade de ter mais, se antes era apenas por Kath, agora ela tinha mais e isso tornava tudo tão mais difícil e tão mais simples de escolher. O pior era que o que a assustava mais não era a decisão, não era passar por tudo aquilo, era quem ela se tornaria depois da conversão, se ainda seria a mesma quando sua pele ficasse fria, os olhos mudassem de cor e os dentes a lembrasse sempre do que ela mais desejaria, sangue.

Por um longo tempo ele apenas a segurou e ela estava agradecida por isso, de algum modo ele sabia exatamente do que ela precisava e quando se afastaram Kah Sung segurou seu rosto e encostou a testa dele na dela.

- Eu vou cuidar de você.

Elari fechou os olhos, sentiu a segurança aumentar e acenou já mais aliviada.

- Obrigada.

Ele sorriu e se afastou então ela viu onde estavam, no mesmo cômodo de sonhos, agora ela via as paredes pintadas como um céu em tons de azul escuro e roxo com centenas de estrelas prateadas, o piano estava logo ao lado e as pinturas haviam sido organizadas. Ela caminhou até a parede de vidro e observou jardim de morrigans.

- Como você sempre sabe onde me encontrar?

Aquela era uma dúvida que tinha desde os encontros com arco e flecha, ele sempre aparecia quando ela estava no meio do caminho ou logo depois que enchia a aljava, sempre no exato local.

- Apenas sei, tenho teorias, mas nenhuma certeza.

Ela olhou para ele, tinha ficado no mesmo local e mantinha toda a atenção nela, aquilo era inebriante, toda a sensação de o ter somente para si, por completo. Ciente de cada movimento, andou até as almofadas de todas as cores que ficavam ao chão próximas à estante que substituía uma parede, a madeira também estava decorada, ela reparou, da próxima vez perguntaria quem fez tudo aquilo, mas agora... Ela se sentou.

- Me conte.

Ele se afastou e parou ao lado do piano, tirou o manto e o colocou sobre o instrumento.

- Antes me diga o que a preocupa.

- Pensei que já soubesse...

Uma jogada que ela esperava que ele entendesse, mas ele simplesmente se aproximou e sentou próximo, de frente e lado a ela.

- Apenas senti seu medo.

Ela enrugou o nariz, devia ter sido no seu cheiro e ela não estava ansiosa para descobrir qual o odor do medo.
Ela observou cada traço dele antes de desviar o olhar para as pinturas e começar a falar, a sinceridade era um aspecto dela que havia sido deixado de lado por muitos anos, quem sabe agora poderia se abrir, aos poucos, ao menos.

- Ruilara e Derok me dispensaram e pelo visto estou um pouco adiantada. - ela deu uma breve espiada nele, ainda se mantinha focado e sério - Então, por ser hetar, meu desafio, e o de Jasti, é diferente. Vamos ter que enfrentar Raykar Spinov.

- Está com medo de lutar contra ele?

Mais uma vez ele sabia exatamente o ponto dela.

- Não. Não é ele.

Ela olhou para Kah Sung e dessa vez manteve o olhar fixo nele, mas não havia nenhum sinal do que poderia estar se passando na mente dele.
O problema não era Raykar ou sua assustadora e opressora habilidade, mas a simples realidade que ele era Salyu. Ele já estava próximo do fim de sua existência, já tinha noventa e três anos, mas ainda tinha aqueles olhos e ainda era assustadoramente forte.

- Quais são suas teorias?

Ele a olhou brevemente antes de se deitar de costas, estava encarando as pinturas no teto, as retratando pessoas, Elari também se deitou.

- Você sabe o que é destino de sangue?

Ela acenou, mas ele não podia ver então respondeu.

- A combinação perfeita.

- Sim, mas não é apenas isso. Existe o destino de sangue, alguns contam que ele foi escrito nas estrelas e é algo tão raro quanto a queda de uma. Mas... Existe.

O rei encontrou seu destino de sangue e por isso foi tão poderoso e Kah Sung só existia por conta desse poder.

- Não é nenhuma certeza quando se encontra o seu destino de sangue, mas quando se é feito o laço, fica óbvio.

- Pela amplificação?

- Não é apenas isso. - Ele se sentou e ficou um pouco acima dela, usando uma mão de apoio, passando o braço por cima dela. - Existe mais sobre o laço perfeito que poucos conhecem, é uma ligação que transcende o sangue, também interliga os espíritos, ao ponto de um poder se mesclar ao outro, ao ponto de sentir e escutar o que não é dito.

Uma pausa foi feita e Elari prendeu a respiração esperando que ele dissesse.

- Acho que você é o meu destino de sangue.

Ela não sabia o que pensar, um pouco de desconfiança brotou em seu peito mas Kah Sung se aproximou mais e a circulação rápida por seu corpo fez a mente ficar ainda mais inquieta e incapaz de raciocinar.

- Sabe o que isso significa?

Ele se inclinou mais e seu nariz roçou no pescoço dela fazendo uma onda de arrepios percorrer o corpo de Elari.

- Que isso tudo será ainda mais forte.

As dúvidas de Elari foram ceifadas com aquelas palavras, quando ele a inspirou e depois a beijou. Ela segurou o rosto dele e o afastou para que pudesse olhar nos olhos dele, pudesse ter completa solidez naquilo.

- É verdadeiro? Tudo isso.

Os olhos dele brilharam como estrelas e ela se viu mais perdida nele. Mas que labirinto era aquele sentimento, um em que não era possível voltar ao início e ela estava bem no centro dele.

- É real e é verdadeiro.

Os EternosOnde histórias criam vida. Descubra agora