Aquele nome fez com que Talitha finalmente entendesse o porque de achar a mulher familiar. Não que ela se recordasse da figura magra que se dirigia as cadeiras de espera da clínica. Ah não, ela não havia visto-a vezes o suficiente para se recordar da aparência. Além disso havia o fato da mulher estar com os cabelos mais escuros, sendo que nas poucas fotos que ela havia visto os fios levemente ondulados eram lisos e loiros. Mas ela se recordava com clareza do nome. E das noites em que havia visto a melhor amiga chorar sussurrando o nome daquela mulher.
Talitha se recordava, particularmente de uma forma muito vívida, de certa noite. A primeira noite de Alicia na cidade durante as férias de inverno. A noite em que ela insistiu com os pais da melhor amiga para passar a noite lá com ela, afinal, estava morrendo de saudades pois não se viam a quase seis meses além de que ela havia visto que Alicia não estava muito bem. Mas a parte mais clara em sua memória era ter acordado naquela madrugada, rolado no colchão que estava colocado ao lado da cama da mais velha.
Ela ouviu os soluços abafados, no primeiro momento não soube o que acontecia, mas logo se sentou em sua cama improvisada e notou a amiga encolhida entre seus cobertores. Lembrava-se do seu desespero ao notar o quão dolorido era aquele choro. Naquela madrugada ela havia pulado para a cama da mais velha, envolvendo-a em seus braços finos e acariciado os cabelos da melhor amiga até que ela se acalmasse. Um pouco antes do sol nascer, sem que nenhuma delas houvesse dormido muito, Alicia disse o que foi a explicação completa para Talitha.
- Ela se foi – a voz fraca e quebrada pelo choro da estudante de veterinária sussurrou – Ela me deixou. A discriminação e o preconceito...ela disse que não valia a pena passar por isso.
Talitha não havia deixado a mais velha dizer mais nada, apenas beijado o tomo da cabeça dela e sussurrado que tudo ficaria bem uma hora ou outra. E agora, quando, pela primeira vez em anos, tudo estava finalmente bem, aquela criatura aparecia justo ali. Talvez ela devesse apenas esperar que a situação se resolvesse com Alicia, mas a cara de pau daquela mulher a irritou em um nível que não foi possível permanecer calada. Por isso ela se levantou da cadeira, apoiando as mãos na mesa, e encarou a outra esperando que ela virasse na sua direção outra vez.
- Sabe – começou Talitha saindo de trás de sua mesa e caminhando até estar do outro lado se recostando na borda e encarando a mulher de braços cruzados – Se tivesse me dito seu nome antes eu provavelmente teria te mandado embora – comentou ela com um sorriso falso – Até porque, é preciso muita falta de vergonha na cara para aparecer aqui agora.
- Desculpe – respondeu a outra sem sentar-se e encarando Talitha de volta com uma expressão surpresa – Posso saber quem você acha que é para falar assim comigo?
- Ah, que indelicadeza a minha – respondeu Talitha com um sorriso maior e ainda mais falso – Não que eu me importe no momento. E eu só sou a melhor amiga da Alicia. O que, acredito, provavelmente me dá o direito de querer virar a mão nessa sua cara de pau.
- Como é? – perguntou Jessica ofendida com a forma como a mais nova a estava tratando, mas sem saber como reagir.
- O que você esperava, Jéssica? – questionou Talitha ficando séria pela primeira vez – O que espera vindo aqui? Que Alicia te perdoe? Ou você realmente acha que ela é estúpida o bastante para voltar pra você depois de 10 anos? – enquanto falava sua raiva da mulher ia crescendo, até que ela descruzou os braços e apontou o indicador direito para a mais velha – Você a abandonou. Simplesmente a deixou para trás e passou os últimos 10 anos sem sequer dar notícias, sem sequer tentar saber como ela estava. Não entendo como tem a coragem de aparecer assim aqui.
Talitha provavelmente diria mais alguma coisa, mas ouviu o som da porta do consultório se abrir e se calou. Como estava de frente para o corredor ela pode ver a moça carregando sua gatinha nos braços encostando a porta e caminhando para a saída. Ela forçou um sorriso e voltou para detrás da mesa ouvindo a jovem dizer que a Dra. Ferraz havia pedido um retorno em uma semana. Talitha garantiu que marcaria e depois ligaria avisando. Nesses minutos Jessica ficou parada, em pé, onde estava ainda surpresa e sem saber bem o que fazer. A mais nova agradeceu que a mulher ainda parecia ter um pouco de bom senso ao ficar calada até a moça sair fechando a porta de vidro da clínica.
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Argentum [EM REVISÃO]
RomanceAlicia Ferraz é uma simples veterinária, mas talvez não tão simples assim. Mora numa cidade pequena no interior do Rio Grande do Sul, deixou toda a vida que havia construído em Porto Alegre para voltar e cuidar dos pais. Quando o pai, também veterin...