XXXVI

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M

d e s p e r t o u

Suas pálpebras, há tanto fechadas, afinal abriram-se de súbito, acordando de um sonho infestado de demônios. Inspirou fundo e o ar passou raspando por suas narinas, por seus pulmões há muito tempo parados. Suas mãos foram de encontro com a teto de seu caixão, da cápsula que o manteve cativo, e logo arrebentaram a porta com pinos de metal e vidro.

Sua cabeça estava confusa e nenhum pensamento pousava nos limites da razão por muito tempo, nem chegou a escutar os estilhaços da porta pressurizada. Sentou-se naquele cômodo escuro, ainda apoiado na superfície almofadada. Com um ímpeto no peito e um gesto largo com as mãos, houve um fraco pulso eletromagnético no ambiente, ligando parcas luzes e a maioria ainda de lâmpadas incandescentes e amarelas. Um tanto estranho, pensou ele quando já raciocinava melhor, pois a máquina que o mantinha em criostase deveria estar desligada ou queimada também, e ele por consequência morto ou desperto há...

Há anos.

Aquela ideia se instalou com peso e naturalidade em sua cabeça. De algum modo, sabia que passara-se muito tempo. Talvez soubesse disso por conta da camada grossa e suja de pó sobre a cápsula criogênica e sobre cada objeto ali no ambiente, por causa das teias de aranha também abandonadas nos cantos. Ele sabia onde estava. Sacudiu o rosto, sentindo o lugar com seu tato magnético. Seria ele um nome esquecido também? Alguém enterrado?

Estava trajado em roupas indignas, quase hospitalares. Quase um pijama, e ele sentiu nojo. Seu braço estava pesado e ele, assim como em milhões de vezes durante a vida, encarou o número marcado por mãos vis em sua pele:

2 1 4 7 8 2

Voltou a pensar no que o preservara ali. Seu pulso, seu poder, continuou a trabalhar como um fraco coração, zelando que a máquina continuasse bombeando seu sono induzido e ele, ainda vivo, mantivesse a máquina. Puro conceito de homeostase.

Mas o que o despertara agora?

Ira. A mais pura delas.

Recordou-se de sentir algo assim três vezes, uma ira que não era dele e ainda assim tão familiar. A primeira há muito tempo, numa ocasião que o fez conhecer Lorna Dane. O resto sentira enquanto estava em criostase, sem saber o que ocorrera. Esperava que estivesse tudo bem com Lorna.

Algo dizia que não estava.

Virou-se na cápsula, testando os pés para fora. Seu equilíbrio era parco, mas melhoraria em breve. Apoiou-se com a cintura na carcaça da câmara, sua crisálida, e encarou o resto do cômodo amplo, mal iluminado e de aspecto sujo. Existiam telas negras empoeiradas do outro lado, televisores. Algumas estavam quebradas e ele não sabia se utilizavam aquilo para monitoramento de dentro ou de fora. Com uma gota de suor a descer sobre suas têmporas, ele lançou outro pulso eletromagnético.

Os televisores que ainda funcionavam ligaram no que pareciam canais de notícias. Ele cruzou os braços, observando. Aprendendo o que acontecera no mundo enquanto estivera em seu pesadelo sem sono, sem morte.

** ** **

O corpo de Wanda acordou antes que sua consciência.

Seus olhos se abriram com as pupilas dilatadas e a boca seca, pânico saindo e entrando pela sua respiração afobada. Tremeu ainda como se recebesse altas doses de eletricidade, enquanto sentia um peso em seu pescoço. Um peso terrível, um aperto gradativamente maior, interrompendo a circulação e seu ar. Tentou alcançá-lo com as mãos, pois era óbvio que era uma nova coleira a lhe apertar a carne e sufocar a liberdade, mas seus punhos também estavam algemados. Ela soltou um ganido, gritos, e quase chorou, seus olhos tornando-se rubros em apenas um segundo, dando-lhe força etérea para poder quebrar a algema e levar a mão à pele.

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