LXIV

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Ao contrário do ambiente de aura amena e de cumplicidade de antes, Bucky olhava para a mulher deitada na cama da Ala Médica com certa raiva, embora a situação fosse tão absurda que não o permitisse ficar bravo de verdade. Ele estalava os próprios dedos e suspirava, gestos que faziam o tempo se arrastar no relógio.

— Minha nossa, Barnes. Não é à toa que Wanda acordou com você aqui, toda essa inquietação estranha nos dedos! Se ficar ao lado de Shuri, é capaz dela despertar também.

A Wanda na cama não era Wanda. Seus olhos poderiam ser verdes e a pele igual, porém da sua boca saíam palavras ásperas de deboche emolduradas por um leve sotaque inglês. Bucky não sabia que um dia qualquer poderia captar a diferença de almas dentro do corpo, mas bastava dois segundos de conversa para perceber que aquela não era a Feiticeira Escarlate.

— Mais cuidado, seu gato tonto. Não é normal que alguém refira-se a si mesmo na terceira pessoa. Se algum dos enfermeiros ouvir...

— Vão dizer que enlouqueci. — Ebony, transfigurado na jovem sokoviana, deu de ombros. — Mas eu ficaria menos alarmado se fosse você, pois as pessoas aqui são bem lenientes com as manias da Wanda. Ninguém vai achar estranho se ela se referir na terceira pessoa. Vão dizer que é algum lapso dissociativo. Daí chamarão aquela psiquiatra, Njeri.

— Deus, dá para ficar quieto?

— Bem, meu caro, eu fico se você ficar.

Bucky segurou o próprio rosto num resmungo longo e baixo. Só queria que Wanda ficasse bem e que fosse rápida. Olhou para o relógio. Passou-se apenas dez minutos.

***

No quarto de Wanda Maximoff, na ala dos dormitórios reservados aos Vingadores Secretos, imperava o aroma de incenso. Ela havia organizado brevemente a bagunça que fizera ao procurar a vareta de mirra, pois sabia que não era muito bom abrir círculos mágicos com a desordem ao seu redor - embora isso não impedisse nenhum tipo de viagem astral. Estava sentada no meio do círculo traçado com giz no assoalho e inspirava profundamente, sentindo o ar preencher seus pulmões e seu diafragma se estender dentro do tórax. Suas mãos, ao invés de apenas repousadas sobre os joelhos, formavam um mudra delicado em sua postura ereta, enquanto seus olhos estavam fechados.

Murmurava uma oração de sua fé. Não sabia exatamente o que encontrar na viagem astral, mas uma proteção extra não lhe faria mal algum. Livrar sua própria alma para além dos limites do corpo não era uma tarefa difícil para a feiticeira, a questão era fazer isso de forma consciente, segura. Ela inclinou o rosto, sua boca um tanto aberta. Névoa vermelha circundava-a com um brilho etéreo, cobrindo sua pele que uma sensação morna. Wanda abriu as pálpebras, suas íris e escleras completamente escarlates.

Enxergou pensamentos próximos, o bombear de sentimentos e as faíscas de ideias. Não deixou-me levar pela sede de entender cada coisa que encontrava no caminho, os devaneios de estranhos ou as memórias de uma árvore. Apesar das diversas camadas da realidade a convidarem para vislumbrar as possibilidades, seguiu em frente no caminho de cores e chegou até onde estava Shuri, ou melhor, seu corpo físico. Sabia que Ororo e T'Challa não podiam vê-la, mas Wanda sentiu-se uma intrusa por invadir um momento próximo dos dois. O rei estava vulnerável pela irmã desacordada, já Tempestade se compadecia pela sua dor mesmo que não houvesse nada que pudesse fazer. Estavam abraçados de lado. Wanda esperava trazer o milagre que tanto esperavam.

Deu um mergulho para um plano em que não existia solidez.P

Por um segundo ela achou que tinha deixado de existir também. Não escutava, não via, não sentia e sequer pensava. Foi um segundo de paz, mas logo as coisas passaram a ter contornos e aromas, como se tivesse acabado de acordar e sua visão ainda estivesse embaçada. Ela não tinha certeza se estava vendo direito, se era uma projeção da sua psiquê, mas o entre-planos era... Como ela poderia descrevê-lo? Era um maldito ancoradouro, um porto. E um porto movimentado. As formas que passavam por ela e por vezes trombavam com seu espírito eram ora estreitas, ora largas; ora baixas, ora altas; e não raramente tinham braços demais ou silhuetas não humanas. E era até errado dizer que eram formas, pois Wanda tinha a impressão que mudavam ao passarem pela sua visão periférica. As cores se alternavam e se mesclavam, nada ficava no lugar. Talvez não fosse adequado praguejar num plano astral, mas não conseguiu evitar.

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