Capitulo 8: "Nenhum pouco Forte" - parte 3

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No meio do caminho, eu disse:

  —Vem, vamos para um outro lugar. — disse e Julia assentiu e me seguiu. 

Minha cidade é daquelas típicas cidades onde, tudo fica mórbido quando escurece. As pessoas não saem de casa, e só pode ouvir, os latidos dos cachorros das casas. É o único barulho que podemos ouvir a noite. A noite estava quente, com estrelas cintilantes no céu, e uma enorme lua brilhante e reluzente, que faz nos sentirmos vivos.

Mas hoje, eu estava triste, e morta por dentro. E nem mesmo o sol ou a lua reluzente, conseguia me deixar viva por dentro. Minha mãe estava no hospital, e eu não estava bem o suficiente para enfrentar aquela barra toda. Cruzei a estrada principal, e pedalei em direção ao lago da cidade, e ali estacionei a bicicleta no chão, e me sentei no gramado verde.
Julia sentou-se ao meu lado, e ficou calada. Essa era uma das dádivas de Júlia, ela simplesmente não falava, ela sabia a hora exata de falar e a hora certa de ficar de boca fechada. Mas, dessa vez, eu queria que ela gritasse, que ela me provocasse, que ela dissesse o que sentia, e ela não fez aquilo. Ela ficou quieta, como se não pudesse falar coisa alguma para mim, como se a pessoa mais falante do mundo inteiro, perdesse a força da fala.

E quando aquilo me encheu, eu disse: 

—Por favor, diga alguma coisa. &disse suplicando. 

Julia me olhou, e ela continuou em silêncio. Eu suspirei disse:

—Quando eu era pequena, eu amava nadar nesse lago. Para mim, ele era como se fosse um enorme mar. — eu sorri ao me deparar com a ideia ridícula e infantil que eu tinha sobre esse lago:

—Eu não conseguia dar pé, então, minha mãe entrava comigo, e eu me sentia a rainha do lago ou algo do gênero. Conforme eu fui crescendo, eu fui percebendo que essa ideia era totalmente ridícula, e eu não dava mais pé. Entristecida, minha mãe me olhou e disse que não importava que eu não cabia mais no pequeno lago da cidade, mas que eu continuasse me sentindo a rainha dele. A princípio, eu não compreendi, mas agora, sentada aqui e vendo isso e lembrando disso, eu posso compreender. Eu posso fazer tudo o que bem eu quiser, só não posso por limites em mim mesma caso não dê mais pé para mim. — disse suspirando.  

E Júlia, ainda ficou em silêncio.

  —É hora de ir embora. — disse por fim, sabendo que ela não diria mais nenhuma palavra. 

Júlia se levantou, e em silêncio, pegou a sua bicicleta e juntas, voltamos para a minha casa. Naquela noite, eu desci até o último andar, comi como se eu estivesse faminta, e fiz novamente aquilo.

Olhei no espelho, e ainda me via a massa gorda e nojenta que eu era. Me ver daquela forma, me deu nojo, mas eu sentia uma calmaria todas as vezes que eu fizesse. Era como se, de alguma forma, eu podia descontar todas as minhas tristezas, e dores e frustrações em mim mesma e a cada vez fazendo aquilo, eu não obtinha danos nenhum. Tudo mudou a partir daquele dia, a visão em mim mesma. Eu não posso dizer que coisas ruins acontecem o tempo todo, mas posso dizer que coisas ruins acontecem quando a provocamos. Eu estava provocando o meu próprio corpo, deixando-o viciado em um ciclo infinito, deixando-o refém dele próprio.

Deitei na cama, e avistei Júlia deitada no chão, sorri ao vê-la dormindo, mas minha mente estava tão agitada que não consegui fazer o mesmo. Ociosa, me levantei, coloquei um casaco e deixei uma mensagem a Júlia:  

“Tenho que terminar aqueles figurinos. Me encontre na Escola, estarei por lá.  —Xoxo, Cass.”

Peguei a bicicleta e fui em direção a escola, e ali passaria o resto da minha noite, recortando, desenhando, alfinetando. A única coisa que eu sabia tão bem, que além de me distrair me deixava mais calma e confiante. Desenhar, recortar e produzir, era a única coisa que eu sabia que poderia me ajudar, nem mesmo fazer aquilo que eu fazia no banheiro, me ajudaria tanto quanto confeccionar. Era o meu êxtase, era o meu verdadeiro chamado, e sempre quando eu tinha dificuldade, adorava desenhar roupas e estilos com base nos meus sentimentos. E aquilo era o mais do que importante para mim, sempre quis produzir coisas autorais, que fossem diferentes, e que falassem coisas que eu sentia e pensava.

Quando temos coisas dentro de nós, coisas que não conseguimos dizer, ou até mesmo, não temos coragem. Precisamos encontrar algo que nos façamos gritar, gritar sem fazer barulho. Eu cheguei na escola, disposta a terminar a única coisa que de fato, dependia de mim. E era isso que eu iria fazer. Assim que dobrei a esquina, houve um trovão, e em poucos minutos, senti gotas da chuva caindo sob o meu corpo, me molhando por completa. Suspirando, e trêmula com a brisa fria que eu pedalava contra eu comecei a chorar, e foi ali o banho mais profundo que eu já havia tomado em toda a minha vida. 

Sabe, se tem algo que eu aprendi nessa época, foi que, a chuva tem o poder milagroso quando estamos nos afogando em lágrimas. Nem sempre podemos gritar, ou chorar, eu mesma reluto com tudo o que sou para não chorar na frente dos outros, talvez, você seja assim também. E naquele dia, eu pude chorar, e as gotas das minhas lágrimas, se misturavam com as lágrimas da chuva e foi libertador.

Quando você tiver a oportunidade, ouça o que a chuva pode te dizer, mesmo que pareça papo de doido, muita das vezes, é preciso sermos um pouco doidos para compreendermos a sanidade das coisas.  

Com a chuva sob o meu rosto, fui pedalando, e sentindo como se nada mais importava, o meu peso, a minha aparência, o meu estado, o meu coração, a minha profissão, minha mãe internada. Então, eu suspirei e assim que cheguei na escola, até havia esquecido o que eu iria fazer ali. Estacionei a bicicleta de qualquer jeito no canteiro, e então, entrei na escola. Assim que cheguei no teatro, eu sentei no chão, e comecei a recortar as peças, e a costurar os tecidos. É bem verdade que eu sentia mais

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