1. A Confissão da Bramante Branca - Quarta Parte.

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Os olhos arredondados e extremamente meigos da avestruz nivelaram-se na altura do pequeno kumkum vermelho desenhado perfeitamente no centro da fronte da Bramante.

Aquele círculo era a marca do poder xamanista e espiritual de Eremia, que traíra o antigo pacto selado quinhentos anos antes entre os cem Fhar. Esconder Morga fora uma verdadeira e própria loucura!

— Você quer fugir? Quer ir embora? — perguntou a velhíssima Bramante.

— Eu quero minha mãe. Quero saber quem é meu pai! — Decidida, direta, destemida, Morga deixou-se ficar na soleira da porta e aguardou.

Eremia enrijeceu. Levou os braços para a frente e abriu as mãos, logo diante do rosto sardento da jovem.

— Você não está mais conseguindo controlar as energias e não escuta a harmonia do vento. Será que você está perdendo os seus poderes sensíveis? — A xamã agarrou-lhe a cabeça, semicerrou os olhos e voltou a falar: — Você tem ódio demais no coração. Eu entendo.

Eremia foi percorrida por um leve tremor, e Morga aproveitou para retroceder.

— Por que minha mãe não vem mais me visitar? É meu pai que a impede? Diga-me. Você deve me dizer, agora! — Desdenhosa, agressiva e sem mostrar nenhum respeito para com a mulher que a criara, bateu o pé, esperando a verdade.

— Não seja insolente! Esse não é o jeito nem o lugar para falar dessas coisas. Vamos entrar, a temperatura está caindo. Amanhã será o último dia da estação amena Medra e o frio vai chegar, cobrindo tudo de gelo e neve. — A Bramante virou-se e dirigiu-se para a escada monumental, que era bem visível pelo lado de fora graças à comprida parede de vidro que se elevava do térreo até o terceiro andar da casa.

A luz lunar filtrava pelos vidros, e os rostos da velha maga e da garotinha iluminaram-se de azul.

Wapi seguiu-as subindo os degraus com dificuldade. Quando Eremia entrou no grande salão, as chamas das velas reduziram-se imediatamente, criando uma atmosfera que induzia calma.

As paredes vermelhas como o fogo acolheram o olhar de Morga, que estava cada vez mais decidida a não deixar sua raiva apagar-se. A Bramante caminhou lentamente em direção a um dos muitos móveis em madeira marchetada que decoravam suntuosamente o vasto ambiente. Ela levantou delicadamente a tampa do baú, pegou uma caixa de pedra rosa, abriu-a, extraiu dela uma Fituba amarela de sabor limão e acendeu-a. Deu uma tragada que cobriu o seu velho rosto de fumaça, com que procurava esconder seu nervosismo evidente. Depois, com um gesto eloquente, indicou ao Piróssio sua cunha cheinha de Equisetum Arvense, uma plantinha gostosa pela qual Wapi era louco.

Morga viu que a mesa quadrada ao lado do forno da cozinha estava posta como de costume, mas não sentia fome alguma.

— Não vou comer — disse sem se alterar, enquanto Wapi mergulhava o bico na cuia ao lado da lareira de mármore preto.

— Sente-se; eu estou farta de seus caprichos, você deve... — A Bramante foi interrompida bruscamente.

— Devo? O quê? Já não aguento mais as suas ordens! Não sou sua filha. — Essa resposta provocou uma reação imediata.

— Eu disse para você sentar! Se quiser falar de sentimentos e do querer-se bem, então, ouça. — Eremia apurou a voz, deu outras duas tragadas na Fituba amarela e, com a atenção voltada para o cigarrinho fino, sentou-se numa poltrona revestida de tecido verde brilhante.

Morga, por seu lado, permaneceu de pé, com as mãos nas cadeiras e o olhar ativo.

— Sua mãe virá amanhã de manhã. Recebi uma mensagem do Mosteiro de Hamalios. Quer ler? — A Bramante apertou os olhos, que ficaram pequenininhos.

— De minha mãe? Sim, claro, quero ver a mensagem. — respondeu Morga, esboçando um sorriso.

O Obolho de ouro e cristal voou para o lado da Bramante, deixando para trás um risco de vapor sulfuroso que se misturou com com a fumaça do cigarro. O pequeno dirigível ficou parado no ar, e a quarta portinhola abriu-se, dando passagem à mão magérrima de Eremia para pegar o Ciodalo, o círculo alquímico que contém as mensagens que os Fhar trocam entre si ininterruptamente.

— Tome, leia você mesma.

Fim da Quarta Parte.

Morga - A Maga do VentoOnde histórias criam vida. Descubra agora