2. As Lágrimas da Gestal - Décima Quarta Parte.

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Despertou sobressaltada. Estava suada, com medo.

A noite era profunda, dormira muitas horas.

"Daqui a pouco, meu pai estará aqui. Estou com medo! Como será o rosto dele?", pensou, olhando para o teto.

Ela levantou-se com a respiração agitada e, ao lado do travesseiro, viu o prego de ouro que Eremia perdera. Ao seu lado estava a pedra preciosa presenteada por sua mãe. Ainda confusa pelo sonho, pegou o prego e examinou-o, sem compreender para que serviria. Um raio iluminou sua mente, e ela sussurrou:
— A porta do depósito!

Pegou também o Glibine que brilhava como uma lâmpada vermelha e, presa de uma mistura de pensamentos, a garotinha saiu do quarto, atravessou o comprido corredor forrado de livros, subiu a escada e, ao chegar ao terceiro andar, soube que Eremia estava dormindo na Extânima. Olhou pela grande vidraça que descia até o térreo. À luz da lua branca da noite de Invéria, as árvores e suas folhas pareciam recobertas de pó de arroz. Era um branco opaco que lembrava a neve e o gelo da estação fria de Emiós. A garotinha foi percorrida por um calafrio, mas logo o instinto voltou a atraí-la para a porta triangular. Aproximou-se sem fazer barulho; a fechadura redonda com um orifício no meio parecia perfeita para aquele prego de ouro. Introduziu-o lentamente e ouviu um estalo, depois outro, seguido de outro ainda.

A porta se abriu.

Escuridão fechada saltou-lhe aos olhos, mas o brilho vermelho do Glibine clareou o aposento. Livros, objetos, instrumentos musicais jamais vistos, cordas, pedaços de metal de vários tamanhos, banquinhos e ferros enferrujados apareceram como um tesouro escondido e empoeirado.

— É realmente um depósito, só há bugigangas! Sabe-se lá o que eu esperava encontrar aqui! — resmungou decepcionada.

Distraidamente, pegou algumas folhas amareladas que estavam empilhadas sobre uma pequena poltrona, mas não entendeu nada: estavam cheias de números e dizeres incompreensíveis. Atrás de um móvel de palha trançada, ela entreviu uma cômoda desengonçada; iluminou-a com o Glibine. As sombras vermelhas provocadas pela gema suavizaram os contornos dos móveis, criando uma atmosfera surreal. Morga puxou a primeira gaveta, mas só consegui extrair dela uma nuvem de pó. Abriu a segunda e descobriu um envelope cujas laterais estavam adornadas com preciosos fios de prata. Segurou-o, deslizando os dedos por cima dele: sentiu uma onda de calor percorrer seu corpo. Arregalou os olhos, enquanto gotas de suor brotavam profusamente da sua testa. Abriu o envelope devagar, sentindo o coração aos pulos na garganta.

Ele continha um documento antiquíssimo.

Embora a luz fosse fraca, ela conseguiu ler as primeiras linhas. E foi o suficiente para entender que se tratava de um testemunho importantíssimo.

Ela apertou o Glibine na mão e voltou a pensar nas palavras e nas lágrimas da sua mãe.

Outra onda de fogo pareceu queimar-lhe a pele.

Saiu rapidamente do depósito, trancou a porta triangular, recolocou o prego de ouro no bolso e retornou ao quarto, segurando aquela folha escrita quinhentos anos antes. Deitou-se na cama e, à luz dos candelabros que adornavam as paredes, começou a ler avidamente.

Planeta Terra
Austrália - 1º de janeiro de 2020
Subterrâneo Uluru-Ayers Rock
Planície do Mulga

A ÚLTIMA GUERRA

O sol escureceu, em toda parte ouve-se silêncio mortal.
Agora chegou o fim.
As radiações e a poluição nuclear tornaram nossa sobrevivência impossível. Esta é a Última Guerra, e marca a extinção da raça humana.
A Morte prevaleceu sobre a Vida porque ninguém nos deu ouvidos. Era preciso executar uma seleção genética, mas não obtivemos permissão. Infelizmente, a estupidez, o amor, a ternura e os sentimentos frívolos desviaram os homens que ansiavam por liberdade. Uma liberdade sem sentido e totalmente irracional. Bombas químicas, ataques atômicos e armas devastadoras destruíram o planeta Terra e exterminaram crianças, mulheres e velhos, porém não acabaram com a verdade sublime da eternidade.
Somente nós, os eleitos, vamos chegar ao poder!
Somente a ciência aliada à magia alquímica podia garantir um futuro para a Terra, mantendo parte da humanidade ao nosso serviço. Agora, a eternidade só pode pertencer a vocês! O gênero humano não poderá e não deverá mais existir porque contém, em si, o erro. A única salvação para vocês é abandonar a Terra, fugindo o quanto antes, até alcançar o planeta Emiós, na Galáxia Esperimea. É um planeta muito semelhante à Terra, onde finalmente vocês poderão realizar o sonho da imortalidade. É um sonho que eu não vivenciarei. As radiações devastaram meu corpo, e dedico minhas derradeiras horas de vida a arquitetar um plano para salvar vocês. Considero vocês cem cérebros excelentes - vocês são cem cientistas mágicos, fruto da minha profunda vontade de mudar o sentido da vida.
Morro sabendo que não trairão os meus ensinamentos, que vocês aprenderam com tanta paciência.
Vocês são herdeiros da ciência mágica.
São os únicos que poderão saborear a infinita glória da eternidade, e tenho certeza de que conseguirão completar a fórmula alquímica Shaal Tuak-Pà.
Entrego esta minha massiva ao professor Okrad, ao qual confiarei a documentação necessária para que possam empreender a viagem. Nos Três Códigos Sacros encontrarão a trajetória espacial para alcançar Emiós usando a Curva Stália Fotônica e entrando diretamente no Cordão Esmênio do espaço intergaláctico. Os mapas astrofísicos estão à disposição de vocês. Levarão na grande astronave os mil Supérstites que salvamos. Eles lhe serão úteis. Vocês já sabem como tratar seus corpos modificando o DNA para que jamais a história humana possa se repetir.
Vocês deverão eliminar todas as crianças que venham a nascer com um DNA totalmente humano: são imperfeitos!
A única raça Perfeita e inteligente será a sua!
Os nossos estudos secretos e a nossa potência alquímica não devem ser divulgados jamais: os Supérstites têm de ser mantidos às escuras, caso contrário acontecerá um novo fim.
Que a magia esteja com vocês.

Morga - A Maga do VentoOnde histórias criam vida. Descubra agora